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quinta-feira, 23 de dezembro de 2010
MP pode investigar delegados
E quem investiga o MP? Ele mesmo? E os "checks & balances"???
A concepção de Direito no juspositivismo, no jusalternativismo e nas diferentes escolas jusnaturalistas
Debatem os juristas, há anos, em disputas aparentemente intermináveis, sobre a natureza do Direito. Salientam alguns, a partir das idéias renascentistas, que o único verdadeiramente jurídico é o Direito posto, aquele declarado tal por um comando positivo da autoridade – mormente o Estado –, sentença que se disseminou sobretudo no liberalismo da Ilustração. Outros firmam tese de que o Direito positivado deve subordinar-se a um Direito preexistente, a um sistema legislativo próprio da natureza do homem e do mundo. Por fim, nos últimos tempos levantam-se críticos de ambas as linhas, os quais postulam que tanto a lei positiva quanto a lei natural – para os que a admitem – devem basear-se em critérios sociais a serviço de uma terceira interpretação. Reúnem-se na chamada Escola do Direito Alternativo.
É o fim deste curto estudo desenvolver um pouco os traços gerais das três escolas, tecendo nossas opiniões, à guisa de contribuição à sadia discussão doutrinária.
Chamamos juspositivismo o posicionamento dos que só admitem um Direito posto, ignorando o Direito Natural e, por vezes, negando sua existência.[i] Noutros termos, os juspositivistas pensam e agem, ainda que nem sempre explicitamente, como se a lei dada pelo Estado criasse a verdade: está na lei, cumpra-se! Segundo João Baptista Herkenhoff, prócere das teses alternativistas, o juspositivismo "reduz o Direito a um papel mantenedor da ordem. Sacraliza a lei. Coloca o jurista a serviço da defesa da lei e dos valores e interesses que guarda e legitima, numa fortaleza inexpugnável."[ii] Para esse autor – que resume a teoria juspositivista com maestria, embora dele discordemos completamente por sua conhecida ideologia e posicionamentos doutrinários –, isso é o positivismo: se o Estado cria uma lei, cria uma verdade. E como tal, essa verdade deve ser defendida até que outra verdade – muitas vezes oposta! – tome seu lugar, em nova atividade legislativa estatal. Nisso reside a essência do contra-senso juspositivista, e os exageros kelsenianos, autêntico produto da filosofia liberal do século XVIII.[iii]
Por sua vez, jusnaturalistas são os que, aceitando a legitimidade do Estado em impôr leis, defendem a existência de leis preexistentes e naturalmente válidas e imutáveis, às quais deve submeter-se o sistema positivo. Ao contrário dos juspositivistas, que geralmente negam ou combatem o Direito Natural ou, pelo menos, rejeitam-lhe o rótulo de juridicidade, os adeptos do jusnaturalismo sustentam a validade, a eficácia e a própria necessidade do Estado exercer sua tarefa legislativa; se os primeiros só entendem como jurídica – no máximo – a norma positiva, os segundos são pelas duas, positiva e natural, com evidente subordinação daquela a esta. Conferem ampla liberdade para o Estado legislar nas matérias que lhe são próprias, desde que a ação legiferante respeite o Direito Natural e com ele não conflite. Até mesmo é recomendável, dizem os jusnaturalistas, que em certas matérias o Direito Positivo explicite o Direito Natural. Torna-se, de fato, a lei natural[iv] suporte da positiva, auxiliar em sua exegese, critério para a validade da norma estatal, a qual é tida por ancilla legis naturalis.
Jusalternativismo, enfim, corresponde à contemporânea teoria dos que criticam ambas as precedentes. Parte da dialética, preconizada por Hegel e aperfeiçoada por Marx, de que a História se move por constantes conflitos entre tese e antítese, formando uma síntese, que logo será tida por tese a ser novamente combatida por uma antítese, gerando outra síntese. Nessa perspectiva, há claro maniqueísmo na filosofia dialética[v] e profundo materialismo, disfarçado, n’alguns casos, de humanismo. Desejam os teóricos jusalternativistas pensar o Direito livre de qualquer lei absoluta, seja a dada pelo Estado – eis que, concordando com os jusnaturalistas, afirmam que a lei não tem o condão de criar a verdade –, seja alguma preexistente e natural – porque, e nisso está o enorme erro alternativista, sempre as tais leis naturais terão conceituação dogmática, e os dogmas, para eles, por serem uma tese, devem e serão atacados pela antítese. Preconizam que o autêntico Direito é o que move a antítese contra a tese, no que a atividade do jurista deve tender à revolução, para estar ao lado do oprimido – até porque, sustentam, a lei é feita para os poderosos (tese), e não para os "excluídos" (antítese). Fácil notar o caráter ideológico desta escola, que em vez da justiça almeja o igualitarismo e usar o Direito como ferramenta de transformação social, para a demonstração de que "um novo mundo é possível."[vi]
O juspositivismo e o Direito Alternativo, embora se confrontem, partem do mesmo pressuposto liberal: a verdade é relativa e, portanto, mutável. Para os seguidores do primeiro, tal verdade, vimos, é construída pela lei, emanada da função legislativa do Estado; o que a norma positiva disser, é ou torna-se verdade, pois a lei tem esse poder.[vii] Para os alternativistas, contudo, que muito criticam o positivismo, isso é absurdo, uma vez que a lei por si só pode estar afastada da realidade; o que deve construir a verdade, então, é a condição social, a análise da sociedade: distribui-se justiça na luta pela igualdade nos acidentes. Revitalizam os membros da Escola do Direito Alternativo as máximas da filosofia positivista de Comte – que nada tem a ver com o positivismo jurídico –, reconstruída ou reinterpretada à luz de Durkein, Webber e, sobremaneira, Marx e Gramsci. De qualquer modo, está presente, também neste, a idéia de mutabilidade da verdade, se não pela lei, pelo conflito dialético. A verdade muda conforme os interesses dos oprimidos, de modo a adaptar-se segundo sua busca pelo igualitarismo.
Criticam os defensores do alternativismo o sistema juspositivista por ser este último dogmático, já o dissemos. Ora, não é esse o erro do juspositivismo. Não há nada de mal nos dogmas. O problema é que o juspositivismo dogmatiza aquilo que não é objeto de dogma, que é impossível de ser dogma, dando essa condição a algo que dela é naturalmente desprovido. Sua noção de dogma, outrossim, é bastante confusa e equivocada, uma vez que, se a lei posterior revoga postulados anteriores, já uma mudança dogmática. Se o dogma é a definição e a explicitação da verdade, condicionada a uma fórmula perfeita, e se a lei é que o constrói, segundo os juspositivistas, a própria verdade muda com o advento de nova lei? Como admitir uma verdade mutável? A verdade deixa de ser verdade e passa a ser mentira? Não é próprio da verdade ser imutável e, por isso mesmo, atestar a perenidade de sua natureza?
Essa mesma mutabilidade é a matriz de seu rival, o jusalternativismo. Apenas o paradigma de elaboração da verdade é que o difere do aceito no juspositivismo. Porém, sua insistência na relativização da verdade é a mesma, adaptável às circunstâncias. Podemos resumir: se para o juspositivismo, a verdade é absoluta até que nova lei a modifique – logo, é relativa –, o alternativismo diz que a verdade é relativa – pois as condições sociais é que permitem sua aferição. Tem o mérito, ao menos, o jusalternativismo, de ser honesto ao admitir a relativização da verdade – se bem que nos perguntemos que tipo de mérito há em reconhecer um erro e nele persistir –, ao passo em que juspositivismo também a aceita somente diluindo-a sob um falso conceito de "dogma mutável" – expressão ilógica, absurda.
Quando o alternativismo jurídico aponta que a verdade não é criada pela lei, ele está certo em sua crítica ao juspositivismo. Prega a necessidade imperativa da verdade corresponder à realidade. Todavia, estamos novamente diante de um sofisma, eis que noção de realidade dos alternativistas é fortemente contaminada pela ideologia.[viii] Assim, o que o Direito Alternativo chama "realidade" é, isso sim, uma idéia, que inúmeras vezes com a própria realidade contrasta. E, se a idéia foge da realidade – mesmo que àquela os jusalternativistas chamem pelo nome desta –, a verdade está também comprometida.
Os dois sistemas são filhos da Renascença[ix], que tomou impulso em seu falso humanismo, terrivelmente antropocêntrico, com as idéias liberais universalizadas após a Revolução Francesa de 1789. Correto é afirmar que o humanismo renascentista e a filosofia liberal iluminista constituíram duas etapas do mesmo processo revolucionário[x], o qual, temendo a realidade – que contrariava os interesses egoístas de muitos –, a distorceu para implantar a ideologia. Daí, o Terror da era das guilhotinas, a fúria de Napoleão, as lutas fratricidas pelas unificações nacionais – a união necessária entre Estado e Nação é produto do liberalismo –, o pan-eslavismo da Sérvia e dos czares ocidentalizados, o pan-germanismo de Kaiser e de Bismark, a substituição da Civilização Cristã pela modernidade e o culto ingenuamente otimista no progresso, o contratualismo romântico de Rousseau, o socialismo utópico de Proudhon, sua versão pseudo-científica marxista, o ódio de Lênin e Stálin, o racismo político e doutrinário de Hitler, a adoração fascista pelo Estado, os defensores de pretensos "direitos" dos animais, o pensamento politicamente correto, todas as espécies de igualitarismos e totalitarismos[xi], a liberdade do erro, os movimentos pró-aborto, as gnoses dos conservadores e falsamente aristocráticos, as reações esquerdistas, um democratismo irracional etc.
Apresenta-se, nesse ponto, uma tentativa de resgatar o Direito Natural, como guia, inspirador e moderador da lei positiva. Igualmente criticado pelo jusalternativismo, a este só responderemos se pudermos minar seu sistema hermeticamente fechado, o que foge ao escopo do artigo. Talvez sob os escombros do que resta de civilização, reconheçamos a existência, validade, licitude e eficácia de postulados jusnaturalistas. Vestígios do apreço pelo Direito Natural encontramos no Código Civil da Áustria – nação que, mesmo sofrendo a imposição externa de perder sua tradicional Casa Imperial, os Habsburgo, símbolos do passado católico e combativo, continua baluarte de um sadio conservadorismo, sem afetação –, que dispõe, em tradução do erudito e justamente celebrado Carlos Maximiliano:[xii]
Art. 7º - Quando o caso não puder ser decidido de acordo com a letra do texto, nem com o espírito da lei, atender-se-á às prescrições análogas contidas claramente nas leis, bem como aos princípios aplicáveis a disposições relativas a assuntos semelhantes. Se o caso permanecer ainda duvidoso, decidir-se-á, depois de coligir e apreciar cuidadosamente todas as circunstâncias envolventes, de acordo com os princípios da justiça natural.(grifos nossos)
Em que pese ser o comando legal austríaco reconhecimento do Direito Natural meramente como subsidiário do Positivo, como supridor de lacunas, já é um passo no universo juspositivista, contra o qual alguns querem ver combater somente o Direito Alternativo. E é só na Escola Jusnaturalista Clássica, de contornos escolásticos, principalmente tomistas, que encontraremos Direito real, não criando verdades, mas explicitando-as pela atividade positiva do Estado, ou respeitando-as quando as leis a elas não se referirem. Nesse diapasão, o ensino de Santo Tomás de Aquino: "A legislação humana não goza de caráter de lei senão na medida em que se conforma à justa razão; de onde se vê que ela recebe seu vigor da lei eterna. Na medida em que ela se afastasse da razão, seria necessário declará-la injusta, pois não se realizaria a noção de lei; seria antes uma forma de violência."[xiii] Para o Direito Alternativo, também, as leis positivas podem ser injustas. Entretanto, o critério para análise da injustiça é outro: no jusalternativismo é a dialética, a condição social, a percepção do que chamam de realidade, mas que, em verdade, é sua idéia, ideologia; no jusnaturalismo, o que torna uma lei positiva injusta é sua inadequação à verdadeira realidade, sua contraposição à razão, à natureza das coisas, à lei eterna e natural.
Se mencionamos jusnaturalismo clássico, é porque outras tendências existem. E tais são, como o juspositivismo e o jusalternativismo, escolas de índole liberal. Prende-se, por exemplo, o jusnaturalismo racionalista[xiv] a valores puramente humanos, definindo a razão sem conexão alguma com valores eternos[xv], materializando a natureza de modo a que se aproximem seus pressupostos de certas nuances já encontradas no positivismo jurídico e na Escola do Direito Alternativo.
De outra sorte, o jusnaturalismo afirmado pela Teoria do Direito Natural de Conteúdo Variável ou Progressivo, por aderir ao refutado conceito de "dogma mutável", peca por seu historicismo que, igualmente, aproxima tal vertente daquelas duas escolas que ao jusnaturalismo se opõem. O liberalismo presente nessas duas correntes jusnaturalistas – uma que vê o Direito Natural simplesmente ligado a uma distorção do humanismo, como se a lei preexistente fosse criação do homem, o que redundaria numa espécie de lei positiva primitiva; outra que concebe a lei natural como um dado mutável – nos permite concluir que só aparentemente rompem com o juspositivismo, eis que sua matriz filosófica é racionalista, o que as aproxima também do jusalternativismo.[xvi] Há dogmatismo no jusnaturalismo racionalista e no jusnaturalismo de conteúdo variável, mas ou dogmatizou o que não pode ser objeto de dogma, ou entendem dogma desprovido de seu elemento substancial, a imutabilidade, a vinculação com a verdade, naturalmente imutável, explicitada por ele.
Fecha-se a questão no jusnaturalismo clássico, jusnaturalismo escolástico. Se a natureza pede a existência da verdade, se esta é, por definição a pela análise lógica da realidade, imutável, e se o dogma é exatamente a explicitação da verdade em uma forma essencial e acidentalmente perfeita, impossível ele ser como o entendem o juspositivismo e as outras duas escolas jusnaturalistas liberais. O juspositivismo e o jusnaturalismo de conteúdo variável pensam em "dogma mutável", seja pela ação legislativa, no primeiro caso, seja pelo decurso histórico, no segundo – o que o torna semelhante ao jusalternativismo, por sua visão cripto-dialética ou protodialética. Já o jusnaturalismo racionalista vê como dogma o que não é verdade, ou, quando aceita verdadeiro dogma, admite, em tese, sua mutabilidade, pois valores humanos podem sofrer alterações em sociedades diferentes. Admitindo a existência de dogmas, o que afasta as pretensões jusalternativistas, não podemos admiti-los como o querem o juspositivismo e os jusnaturalismos liberais, sob pena de não serem legítimos dogmas, mas falsificações. Desse modo, havendo dogma, e, como tal, imutável como a verdade por ele explicitada, só o teremos realmente se referido a valores eternos, restando única condizente com a realidade a teoria escolástica, o jusnaturalismo tomista, clássico, que repousa suas origens em Aristóteles. Conclui-se que a verdadeira lei natural é imutável.[xvii]
Encontraremos a verdade, matéria de um autêntico Direito Natural, nos valores eternos, geradores não só da norma jurídica válida – natural ou positiva sem conflito com aquela –, mas da norma moral. "O que não corresponde à verdade e à norma moral não tem direito algum, nem à existência, nem à propaganda, nem à ação."[xviii]
Entre Santo Tomás e Kelsen, ou Santo Tomás e Hegel ou Marx, ou ainda entre Santo Tomás e Voltaire, o Aquinate sai-se melhor. Aliamo-nos ao zelo pela ordem e pelo respeito à lei que têm os positivistas, mas submetendo a norma estatal à natural; e à crítica que fazem os alternativistas ao juspositivismo por sua idolatria do Direito posto. A proposta alternativa, todavia, não consegue corrigir os erros daquele, pois são "irmãos", e, em sua tese, compila os mesmos conceitos errôneos que ataca, sob nova roupagem e com outro viés.
Não mera hipótese, mas tese comprovada pelas evidências, o jusnaturalismo clássico é motor de uma sociedade verdadeiramente justa, inimiga das misérias humanas, promotora do bem comum, valorizadora do autêntico papel do Estado – nem mínimo como liberal, nem intervencionista como o totalitário –, incentivador das circunstâncias e características harmonicamente desiguais. Fundada em valores imutáveis e eternos, tal sociedade colocará a lei positiva a serviço da natureza, dela nunca discordando, mas aperfeiçoando-a, explicitando-a, ou legislando livremente nos campos pelo Direito preexistente não compreendidos ou vedados.
A norma de Direito Natural "fornece os fundamentos sólidos sobre os quais pode o homem construir o edifício das regras morais que orientarão suas opções. Ela assenta igualmente a base moral indispensável para a construção da comunidade dos homens. Proporciona, enfim, a base necessária à lei civil que se relaciona com ela, seja por uma reflexão que tira as conclusões de seus princípios, seja por adições de natureza positiva e jurídica."[xix]
Notas
[i] Fábio Ulhoa Coelho sintetiza esse entendimento, originada da filosofia jurídica de Hans Kelsen, considerado pai do moderno positivismo jurídico: "O cientista do direito deve-se ocupar exclusivamente da norma posta. Os fatores interferentes na produção da norma, bem como os valores que nela se encerram são rigorosamente estranhos ao objeto da ciência jurídica." ("Para entender Kelsen", São Paulo: Max Limonad, 1999, 3ª ed., p. 22)
[ii] "Para onde vai o Direito? Reflexões sobre o papel do Direito e do jurista", Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996, p. 16
[iii] O liberalismo enfatizou a liberdade individual até no que não deveria, mas deu ao Estado poderes maiores e mais perigosos dos que aqueles existentes no Estado absoluto que combateu – mais perigosos porque velados, mascarados com a idéia de bem comum, que nada mais é do que o definido pelo próprio Estado. Não é à toa que os totalitarismos do século XX, nazi-fascismo e socialo-comunismo, sejam cria do liberalismo, e este filho do absolutismo esclarecido e do pseudo-humanismo renascentista.
[iv] Sobre o conceito de lei natural: "Onde é, então, que se acham inscritas essas regras, senão no livro desta luz que se chama a verdade? Aí está toda a lei justa, dali ela passa para o coração do homem que cumpre a justiça, não que emigre para ele, mas sim deixando aí a sua marca, à maneira de um sinete que de um anel passa para a cera, mas sem deixar o anel." (Santo Agostinho. De Trin., 14,15,21) E também: "A lei natural outra coisa não é senão a luz da inteligência posta em nós por Deus. Por ela, conhecemos o que se deve fazer e o que se deve evitar." (Santo Tomás de Aquino. Decem praec., 1) Se bem que ambos fossem filósofos com amplos conhecimentos jurídicos, citemos um terceiro pensador, desta vez fora do círculo cristão, amado por todos os cultores do latim, que o identificam como a sua língua: "Existe, sem dúvida, uma verdadeira lei: é a reta razão. Conforme à natureza, difundida em todos os homens, ela é imutável e eterna; suas ordens chamam ao dever; suas proibições afastam do pecado. (...) É um sacrilégio substituí-la por uma lei contrária; é proibido não aplicar uma de suas disposições; quanto a ab-rogá-la inteiramente, ninguém tem a possibilidade de fazê-lo." (Cícero. Rep., 3,22,33) Por esses pensamentos, já concluímos o caráter absoluto da lei natural e sua substância, a vinculação a um valor perene e imutável, o que refuta tanto a tese juspositivista quanto as aspirações da Escola do Direito Alternativo, e ainda certas deturpações de correntes jusnaturalistas de feitio liberal e racionalista, como veremos mais adiante.
[v] Para Hegel, mentor da filosofia dialética, o Direito não é, faz-se.
[vi] Qualquer semelhança não é mera coincidência.
[vii] Não é por outra razão que os primeiros apoiadores do liberalismo tenham sido os monarcas absolutistas, os "déspotas esclarecidos". A Revolução Francesa apenas usou o absolutismo como pretexto de sua fúria – até porque a mesma filosofia que a conduziu, o Iluminismo, foi a geradora do Estado absoluto. O grande inimigo do liberalismo foi o Estado feudal, destruído pelo absoluto, mas cujos benéficos traços ainda existiam: os liberais precisavam destruir a Cristandade, e por isso substituíram-na pelos reis absolutos, num primeiro seus títeres, logo seus inimigos, identificados cinicamente, na legenda negra, como medievais, ainda que em nada houvesse semelhança entre uma monarquia absoluta e uma medieval.
[viii] Ideologia é a insubmissão da idéia à realidade. Ao real deve corresponder a idéia, e nisso verifica-se a verdade. Quando uma idéia não corresponde nem se submete à realidade, "forçando as coisas", como se diz, estamos diante de uma ideologia.
[ix] Entre os males da Renascença: volta da escravidão, instituto desconhecido na Idade Média; paganismo; erotização da arte e mesmo entre os clérigos – muitas vezes, o próprio Vaticano renascentista foi palco de escândalos de luxúria –; culto à riqueza; os fundamentos do mercantilismo e da falsa noção de liberdade; relativismo ético; absolutismo etc. Tudo isso como resultado do resgate dos valores greco-romanos... Valores esses que nunca precisariam ser resgatados, eis que a Igreja e a Civilização Ocidental sempre o preservaram: Direito Romano, filosofia grega, estética clássica, latim, grego etc. O que os renascentistas resgataram foram os contra-valores greco-romanos.
[x] Cf. Donoso Cortes, Joseph de Maistre, Plínio Corrêa de Oliveira, e Roberto de Mattei.
[xi] "O totalitarismo nasce da negação da verdade em sentido objetivo: se não existe uma verdade transcendente, na obediência à qual o homem adquire a sua plena identidade, então não há qualquer princípio seguro que garanta relações justas entre os homens. Com efeito, o seu interesse de classe, de grupo, de Nação contrapõe-nos inevitavelmente uns aos outros. Se não se reconhece a verdade transcendente, triunfa a força do poder, e cada um tende a aproveitar-se ao máximo dos meios à sua disposição para impor o próprio interesse ou opinião, sem atender aos direitos do outro." (Sua Santidade, o Papa João Paulo II. Encíclica Centesimus Annus, em 1º de maio de 1991, nº 24) O mesmo Romano Pontífice, gloriosamente reinante, indica o risco semelhante ao totalitarismo, do liberalismo que é sua matriz: "o risco da aliança entre democracia e relativismo ético, que tira à convivência civil qualquer ponto seguro de referência moral, e, mais radicalmente, priva-a da verificação da verdade." (Sua Santidade, o Papa João Paulo II. Encíclica Veritatis Splendor, em 6 de agosto de 1993, nº 101) É a crítica, transportando para o mundo do Direito, do juspositivismo e do jusalternativismo, por suas concepções errôneas da verdade.
[xii] "Hermenêutica e Aplicação do Direito", Rio de Janeiro: Forense, 1997, 16ª ed., p. 297
[xiii] S. Th., I-II, q. 93, a. 3, ad. 2
[xiv] Representantes dessa Escola Racionalista de Jusnaturalismo são Grócio, Tomásio, Puffendorf, Rousseau – o que prova a origem liberal dessa vertente jusnaturalista –, e Kant – idem. Alguns afirmam que Kelsen o sustentava. Se bem que neokantista, Kelsen é mais bem situado entre os teóricos do juspositivismo moderno. Ainda que tenha reconhecido a existência de um Direito Natural – de feições liberais, em que a verdade é construída na natureza e não descoberta nela conforme ensinam os jusnaturalistas escolásticos, clássicos –, não aceitou seu caráter jurídico, preferindo resumi-lo ao campo da moral. Interessante também é perceber que um seu defensor seja Kant, advogado do imanentismo em sua teoria filosófica, enquanto essa corrente jusnaturalista é explicitamente anti-imanentista.
[xv] Sobre o conceito de razão ligada a valores eternos e a falsa interpretação do que seja racional, com critérios materialistas: "Mas esta prescrição da razão não poderia ter força de lei se não fosse a voz e o intérprete de uma razão mais alta, à qual nosso espírito e nossa liberdade devem submeter-se." (Sua Santidade, o Papa Leão XIII. Encíclica Libertas Praestantissimum, de 20 de junho de 1888)
[xvi] O que não poderia ser diferente, pois jusalternativismo e juspositivismo são também da mesma matriz liberal.
[xvii] Cf. Concílio Ecumênico Vaticano II. Constituição Pastoral Gaudium et Spes, em 7 de dezembro de 1965, nº 10
[xviii] Sua Santidade, o Papa Pio XII. Alocução aos juristas católicos, em 6 de dezembro de 1953
[xix] Catecismo da Igreja Católica, § 1959
quinta-feira, 16 de dezembro de 2010
Breve análise acerca da conduta de posse de drogas para uso pessoal
Sabidamente, a Lei 11.343/2006, a Lei de Drogas, inaugurou, a bem ou mal, nova política criminal no tratamento do usuário de substâncias entorpecentes. Após sua edição, debates, por vezes acalorados, se seguiram entre doutrinadores, juristas e mesmo leigos.
Um dos mais controvertidos aspectos do novel diploma legal está contido no seu art. 28, o qual reza, ipsis verbis:
Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:
I - advertência sobre os efeitos das drogas;
II - prestação de serviços à comunidade;
III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
§ 1º Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.
§ 2º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.
§ 3º As penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 5 (cinco) meses.
§ 4º Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses.
§ 5º A prestação de serviços à comunidade será cumprida em programas comunitários, entidades educacionais ou assistenciais, hospitais, estabelecimentos congêneres, públicos ou privados sem fins lucrativos, que se ocupem, preferencialmente, da prevenção do consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas.
§ 6º Para garantia do cumprimento das medidas educativas a que se refere o caput, nos incisos I, II e III, a que injustificadamente se recuse o agente, poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente a:
I - admoestação verbal;
II - multa.
A conduta do referido artigo é a mesma do revogado art. 16 da Lei 6.378/76 (a Lei Antitóxicos): a posse de drogas para uso pessoal.
Não poucos doutrinadores, quer louvando, quer tecendo críticas, apressaram-se em afirmar que o art. 28 da nova lei teria descriminalizado a aludida conduta. Isso equivale a dizer que a posse de tóxicos para uso recreativo pessoal, sem configurar a traficância, a partir da Lei 11.343/2006, não seria mais considerada delito.
Consideramos, de pronto, tal tese absolutamente equivocada pelo que passaremos, com a devida vênia, a expor.
Invocam os partidários da suposição de que a conduta descrita no art. 28 foi, pelo mesmo artigo, descriminalizada, que o art. 1º da Lei de Introdução Código Penal (LICP) conceitua “crime” como a infração penal punida com pena de reclusão ou detenção, de modo isolado, alternativo ou cumulativo, com multa. O mesmo artigo estabelece ser contravenção (o chamado “crime-anão”, nas palavras de Nelson Hungria) a infração a que a lei comina prisão simples, ou multa, ou ambas.
Ora, o art. 28 da lei em comento não prevê nem prisão simples – o que caracterizaria a conduta como de contravenção penal –, muito menos reclusão ou detenção. E a multa prevista no § 6º, alegam, é somente aplicada para garantia do cumprimento das medidas educativas descritas nos incisos do caput. Dessa forma, não haveria de se falar em crime. A conduta continuaria ilícita, mas não se aplicaria o pleno conceito de delito da LICP.
O argumento parece plausível. Entretanto, há que se refutá-lo, dado não ser a LICP uma lei acima do restante do ordenamento jurídico. Se matérias conflitantes existem entre leis ordinárias ou assemelhadas (como os antigos decretos-leis), resolve-se o caso pela aplicação de dois princípios clássicos do Direito Penal: lex specialis derogat lex generali, e lex posterior derogat lex prior.
Bem sabemos que a LICP é lei geral em confronto com a Lei de Drogas, sendo esta a lei especial, dado que regula matéria específica, e aquela expõe princípios. Nesse sentido, a Lei 11.343/2006 poderia, perfeitamente, estabelecer um tipo penal sem necessidade de observância do conceito na LICP emitido, derrogando, nesse particular, o enunciado anterior.
Por outro lado, como se não bastasse, a Lei de Drogas é posterior à LICP, e isso é igualmente fundamento para derrogação.
Embora os princípios gerais da LICP devam ser ordinariamente, observados, ela não é um mecanismo de congelamento legal. A LICP não é imutável. Nem mesmo a Constituição Federal, máxima lei pela qual o ordenamento se regula, o é, salvo nas cláusulas pétreas. A LICP dá um conceito de crime que torna essencial uma pena que não está presente no art. 28? Paciência, isso não a descriminaliza. Aliás, o texto do art. 28 é claro ao denominar as medidas que prevê de penas. E penas são punições do Direito justamente Penal: noutros termos, a lei mesma diz ser crime.
Não é outro o entendimento da Suprema Corte, aliás:
“A Turma, resolvendo questão de ordem no sentido de que o art. 28 da Lei 11.343/2006 (Nova Lei de Tóxicos) não implicou abolitio criminis do delito de posse de drogas para consumo pessoal, então previsto no art. 16 da Lei 6.368/76, julgou prejudicado recurso extraordinário em que o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro alegava a incompetência dos juizados especiais para processar e julgar conduta capitulada no art. 16 da Lei 6.368/76. Considerou-se que a conduta antes descrita neste artigo continua sendo crime sob a égide da lei nova, tendo ocorrido, isto sim, uma despenalização, cuja característica marcante seria a exclusão de penas privativas de liberdade como sanção principal ou substitutiva da infração penal. Afastou-se, também, o entendimento de parte da doutrina de que o fato, agora, constituir-se-ia infração penal sui generis, pois esta posição acarretaria sérias conseqüências, tais como a impossibilidade de a conduta ser enquadrada como ato infracional, já que não seria crime nem contravenção penal, e a dificuldade na definição de seu regime jurídico. Ademais, rejeitou-se o argumento de que o art. 1º do DL 3.914/41 (Lei de Introdução ao Código Penal e à Lei de Contravenções Penais) seria óbice a que a novel lei criasse crime sem a imposição de pena de reclusão ou de detenção, uma vez que esse dispositivo apenas estabelece critério para a distinção entre crime e contravenção, o que não impediria que lei ordinária superveniente adotasse outros requisitos gerais de diferenciação ou escolhesse para determinado delito pena diversa da privação ou restrição da liberdade. Aduziu-se, ainda, que, embora os termos da Nova Lei de Tóxicos não sejam inequívocos, não se poderia partir da premissa de mero equívoco na colocação das infrações relativas ao usuário em capítulo chamado ‘Dos Crimes e das Penas’. Por outro lado, salientou-se a previsão, como regra geral, do rito processual estabelecido pela Lei 9.099/95. Por fim, tendo em conta que o art. 30 da Lei 11.343/2006 fixou em 2 anos o prazo de prescrição da pretensão punitiva e que já transcorrera tempo superior a esse período, sem qualquer causa interruptiva da prescrição, reconheceu-se a extinção da punibilidade do fato e, em conseqüência, concluiu-se pela perda de objeto do recurso extraordinário.” (STF, 1º Turma, RE 430105 QO/RJ, rel. Min. Sepúlveda Pertence, 13.2.2007. Informativo n. 456. Brasília, 12 a 23 de fevereiro de 2007).
Ademais, a Lei 9.099/95, ao igualar, na prática, a contravenção ao crime de menor potencial ofensivo, golpeou, gravemente, a diferenciação dada pela LICP, a qual, aliás, era a razão de ser de seu conceito.
Não contentes com tal arrazoado, os defensores de que não é mais considerada crime a figura do art. 28 sustentam a idéia de que ao delito não pode escapar a possibilidade de aplicação da pena privativa de liberdade. Mesmo a Lei 9.099/95 não a afasta totalmente, ao passo em que a nova Lei de Drogas o faz.
Por mais que concordemos que ao usuário de drogas se deva dar um tratamento mais rigoroso do que a leniência da atual lei, não há que se desconsiderar que o conceito de punição penal evolui com a sociedade. A pena privativa de liberdade ou a multa não são as únicas a serem consideradas criminais. O crime não pode ser conceituado pelo tipo de punição que encerra, e sim pela vontade do Estado em considerar tal conduta como criminosa (o antigo “fato típico, ilícito e culpável”).
Na seara pela qual nos enveredamos, como que em um parêntese, cabe comentar justamente a excessiva tolerância do art. 28. Embora, como dissemos, a pena de prisão não seja, de si, necessária para caracterizar uma conduta como criminosa, no caso em tela, seu afastamento absoluto gera, por outro lado, uma inaplicação prática de abissais proporções.
Fez bem o legislador em optar, em um primeiro momento, pela reeducação do mero usuário. Esquecendo-se, sem embargo, que, além disso, é um financiador do tráfico, cometeu um dos mais graves equívocos rechaçando qualquer tipo de prisão, seja a simples, seja a detenção, seja a reclusão, ao menos para garantir a aplicação das medidas que prescreve. A ineficácia do artigo não é apenas social, na sensação de segurança da população, mas bem prática, de caráter eminentemente técnico-jurídico.
Ilustremos com Guilherme de Souza Nucci (cf. Leis penais e processuais penais comentadas, Ed. RT, 4ª ed., p. 328). Ao usuário de drogas, constrangido a cumprir uma das penas previstas no art. 28, e negando-se a cumpri-las, será imposta uma multa, após submetê-lo à admoestação verbal. Ora, se tal usuário for economicamente hipossuficiente, não pagará a multa, eis que, não possuindo bens valiosos, se impedirá a execução forçada. De outra sorte, sendo o usuário opulento, não se incomodará em, na mesma situação, ser continuamente admoestado e forçado a pagar as multas impostas: para ele, haverá sempre dinheiro para comprar drogas e para saldar as coimas. Em ambos casos, o resultado será reincidência sem possibilidade concreta de ação do Estado na coibição do tipo criminoso.
A reeducação, e, para assegurá-la, a admoestação e a multa, são bons instrumentos, porém apenas em um primeiro momento. Melhor seria, conclui Nucci, “deveriam ser dadas muitas oportunidades ao usuário de drogas, mas com um limite qualquer, acarretando a aplicação de pena privativa de liberdade, como medida final, em caso de insucesso de todas as anteriores. Não é possível continuar considerando crime essa conduta (art. 28, caput, desta Lei) e, concomitantemente, afastar, por completo, a viabilidade de prisão do condenado recalcitrante e insistente.” (p. 328)
Nucci aqui, é bom que se fale, não está colocando a possibilidade de pena de prisão como substancial ao conceito de crime, mas apenas registrando que, no tema, trata-se de um mandamento desprovido de força estatal real.
Infelizmente, o caminho escolhido pelo legislador foi da mais pura atecnia, o que gerou incontáveis problemas, a serem resolvidos, mais uma vez em nosso Brasil já farto de tantas leis socialmente ineficazes e infindamente multiplicadas, em uma futura, porém necessária, reforma do diploma.
segunda-feira, 13 de dezembro de 2010
Yeda quer encontrar Tarso para discutir propostas de grande impacto nas contas do Estado | Governo estadual
Implantação do subsídio para delegados e oficiais da BM terá impacto de R$ 360 milhões ao ano
Antes de entregar a chave do Piratini ao eleito Tarso Genro, a governadora Yeda Crusius deseja ter um encontro reservado com ele para repassar pelo menos três propostas que têm impacto financeiro superior a R$ 360 milhões ao ano, segundo a Fazenda. Trata-se de subsídios para delegados de polícia e para os oficiais da Brigada Militar, além da organização do quadro de pessoal da Fundação de Recursos Humanos.
Conforme o chefe da Casa Civil, Bercilio Silva, as propostas ainda estão em análise na Secretaria da Fazenda e devem ser remetidas ao governo de transição na próxima semana. Segundo o auxiliar, é desejo de Yeda apresentar as propostas pessoalmente ao governo eleito.
— Na reunião com a equipe de transição, combinamos que após o dia 15 reuniríamos projetos e programas de continuidade — explica Bercilio sobre a iniciativa da governadora.
Como os três principais projetos têm impacto financeiro "significativo", caberá a Tarso decidir se irá encaminhá-los à Assembleia. Ontem, ele afirmou que vê a iniciativa com bons olhos:
— Sou simpático à política de subsídios, mas temos de verificar a repercussão financeira.
Na próxima semana, o futuro chefe da Casa Civil, Carlos Pestana, deve se reunir com a bancada do PT para analisar as propostas. A preocupação do novo governo é acabar com penduricalhos.
>> Leia a reportagem completa na edição impressa de Zero Hora
sexta-feira, 10 de dezembro de 2010
Da legítima defesa e seu exercício, enraizados no Direito Natural, em face do monopólio estatal da prestação da tutela jurisdicional
O direito à vida, amparado pela lei natural e pela grande maioria das legislações positivas, é absoluto, por ser a origem de todos os outros. Não há que se falar em direitos dos mortos – e mesmo aqueles a estes relativos tutelam, em verdade, o direito à memória e à honra mantidos pelos descendentes do extinto. Protegido, vimos, pela norma positivada pelo Estado, nem por isso deixa de vincular-se juridicamente à natureza, pelo que o Direito Natural é seu primeiro garante.
Forma peculiar de proteção à vida é a legítima defesa de si e de outrem. Aparentemente constitui-se em uma exceção ao mandamento de não matar, ao qual é cominado uma sanção criminal. Todavia, por ser o direito à vida absoluto como dissemos, não comporta o mesmo exceções de espécie alguma. A legítima defesa, na realidade, é uma proteção à vida humana, um exercício de fato do direito à existência, e não uma válvula de escapa que permite que este seja desrespeitado sob determinadas condições. Não quer o legítimo defensor a morte do agressor injusto: aceita-a, tolera-a, tendo em vista as circunstâncias nas quais se encontra, eis que a única possibilidade de efetiva defesa da própria vida consubstancia-se, no caso, no ato de ceifar a do violador da ordem jurídica e social. Do exposto, temos a natureza do conceito de legítima defesa. Ao que rompe o ordenamento proibitivo do atentado à vida, reserva-se, quando esta é a única solução imediatamente eficaz, a justa reação conservacionista do atacado, convertido em defensor de si ou de terceiros. Não é este o agente da morte, senão mero instrumento da gerada pelo próprio agressor, que aceita, mesmo tacitamente, a conseqüência de seu ato desordenadamente violento e intrinsecamente injusto.
Não é a legítima defesa mero instituto de Direito Positivo, i.e., não é simples criação do Estado, que, se não o houvesse feito, criminalizaria quem tem direito à autodefesa – e por vezes dever até! Desdobramento prático do direito pessoal à vida, a legítima defesa pertence ao Direito Natural, conquanto a preservação vital é inata ao ser humano. Explica-o, filosófica e juridicamente, o grande gênio do Medievo e da Civilização Ocidental, Santo Tomás de Aquino, glória dos dominicanos, dos pensadores da própria Igreja, que, no dizer dos Papas, fez dela a sua doutrina. É o ensino do Aquinate: “A ação de defender-se pode acarretar um duplo efeito: um é a conservação da própria vida, o outro é a morte do agressor (...). Só se quer o primeiro: o outro, não.”[1]
Da mesma maneira, o Catecismo da Igreja Católica sanciona o postulado jusnaturalista, ao declarar que “o amor a si mesmo permanece um princípio fundamental da moralidade. Portanto, é legítimo fazer respeitar seu próprio direito à vida. Quem defende sua vida não é culpável de homicídio, mesmo se for obrigado a matar o agressor (...).”[2]
Muitos juristas discutiram, por anos, a partir do liberalismo, sobre a natureza do instituto jurídico da legítima defesa. Versaram alguns, baseados em um juspositivismo extremo, que, sendo o Estado o detentor do direito de defesa, delega-o ao indivíduo quando não puder exerce-lo. Tal conceito é equivocado, pois ignora completamente a realidade das coisas e o próprio fato, indiscutível, de que o primeiro a desejar, exercer e proteger um direito é o próprio possuidor desse direito. Assim, o direito à vida não é uma concessão do Estado ao indivíduo, mas algo inerente à sua natureza. Também o são os direitos anexos fundamentais, destinados à sua efetivação e conservação. Existente o homem, há o direito à vida, a qual deve ser defendida primeiramente por ele mesmo, subsidiariamente por outros e pelo Estado. Disso já falavam os escolásticos.
Outras teorias, menos absurdas do que a dos que declaram ser a legítima defesa uma delegação do Estado – que teria o primado do exercício do direito à vida de seus súditos e sua conservação, o que vimos ser errôneo –, pecam, todavia, por inexatidão de termos e pressupostos. Para alguns, na legítima defesa, há colisão de bens jurídicos, o que faz prevalecer o do agredido, por ser mais valioso; para outros, como Carrara, há uma delegação inversa a já comentada, desta feita do indivíduo ao Estado, de seu direito de defesa – o que é uma inverdade também, pois o que se delega é o exercício de alguns atos de defesa e, mesmo assim, de modo subsidiário, sem renúncia ao exercício direto –, o qual é retomado quando o Estado não puder defendê-lo; enfim, os teóricos das escolas subjetivistas ligam, como Puffendorf, o instituto ao estado de espírito da pessoa, a qual ficaria perturbada pela agressão ou coagida por ela, ou, então, aos motivos determinantes da repulsa do agredido.
“Todas essas opiniões”, é o magistério do culto Magalhães Noronha, destacado penalista de nossa Terra de Santa Cruz, referindo-se às errôneas teses citadas sobre a natureza da autodefesa, “não procedem, como é fácil verificar. Os subjetivistas transportam a legítima defesa para o terreno da culpabilidade, o que é insustentável, enquanto os objetivistas ou se fundam na idéia contratualista, ou desconhecem a essência do instituto, onde não há conflito de interesse – como no estado de necessidade – mas ofensa a um interesse juridicamente tutelado.”[3] De fato não há conflito entre o real interesse de defesa e um inexistente interesse de agressão.
Logo a seguir, o festejado e erudito penalista conclui que a opinião predominante entre os doutos, hodiernamente, é a de que a legítima defesa é causa excludente da antijuridicidade – teoria felizmente acolhida por nossa lei penal material e indiscutivelmente apregoada pelos juristas nacionais –, é tutela do direito próprio e de outrem. Excluída a ilicitude, tem-se que a legítima defesa é um verdadeiro direito, conseqüência óbvia e autêntico corolário do direito natural, ainda que positivado, à vida.
No século XIII, já tinha afirmado o mesmo o mestre Santo Tomás. A teimosia dos liberais, com sua ânsia em reestruturar o mundo ignorando as lições da moral clássica, é que criou as teorias precedentemente aludidas. Ruindo as mesmas, voltamos ao pensamento tomista, e torna-se no mínimo honesto reconhecer, nessa matéria ao menos, a subordinação das idéias à realidade, varrendo qualquer espécie de ideologia. É, aliás, a compreensão do Doutor Angélico, que, antes da de outrem, estamos ordinariamente obrigados a defender nossa própria vida diante de um ataque movido por um injusto agressor, no que a legítima defesa é um direito, e, n’alguns casos, também um dever, e dever grave, para os que são responsáveis pela vida de outros (pai de família, superior, agente do Estado com atribuição legal para tal, militar etc).
O Direito Positivo brasileiro, na esteira do Direito Natural, assegura a ação de quem, em legítima defesa, repele agressão injusta mesmo com a morte do agressor. Sendo a morte inevitável, que seja a do violador da ordem consubstanciada no preceito legal. E conceitua nossa lei o instituto, valendo-se do estabelecimento de certas condições que o caracterizam, as quais, longe de serem criações do puro arbítrio do legislador ou herança de codificações pregressas somente, inspiram-se na moral cristã clássica, notadamente no pensamento do Aquinate (outra vez), e presente até no Direito Canônico positivo, que aceita a excludente com a definição tradicional. Isto posto, reza o Código Penal pátrio:
Art. 25 – Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios
necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.
Eis aí os elementos caracterizadores da legítima defesa, sem os quais não há que se falar nela: agressão injusta atual ou iminente, moderação no exercício do direito, emprego dos meios necessários, defesa de direito próprio ou alheio.
Não é outro, repitamos, o ensino de Santo Tomás, explicitando e explicando a natureza: “Se alguém, para se defender, usar de violência mais do que o necessário, seu ato será ilícito. Mas, se a violência for repelida com medida, será lícita.”[4]
O nefasto Estatuto do Desarmamento, tão comentado, além de desrespeitar o direito de propriedade, constitucionalmente tutelado, e de lançar as bases de uma cultura da covardia e do capitulacionismo, arremete pesados e inflamados dardos contra a legítima defesa, tal como a comentamos neste ensaio – eis que proibindo o porte ordinário de armas, retira a possibilidade do uso “dos meios necessários”, criminalizando o legítimo defensor –, num claro desrespeito à vida: natural, constitucional e penalmente protegido.
Se a legítima defesa não é direito dado pelo Estado, como pudemos perceber ao longo deste texto, também não cabe a ele retirá-lo de seus súditos, extrapolando os limites de seu poder e investindo, à moda totalitária[5], contra o princípio da subsidiariedade.
[1] S. Th., II-II, q.64, a.7
[2] Cat., 2264
[3] NORONHA, Magalhães. “Direito Penal”, São Paulo: Saraiva, 2000, 35ª edição atualizada, vol. 1, p. 195
[4] Santo Tomás de Aquino. Op. cit.
[5] Mesmo com democracia e manifestação da vontade unânime do povo, pode haver totalitarismo. Este não é necessariamente sinônimo de ausência de regime democrático, e sim a prática reiterada de atribuir-se o Estado poderes que não tem. Não nos esqueçamos que o povo alemão apoiou Hitler, e boa parte dos italianos de então pensava com o Duce.
Operação Guadalupe
O comandante da operação, Delegado Rafael Vitola Brodbeck, informa que contou com a preença de 30 policiais civis, militares e rodoviários federais, sendo um oficial da BM e mais dois delegados de polícia de Rio Grande. Quatro equipes, em sete viaturas, patrulharam estradas vicinais próximas às localidades onde ocorre maior número de abigeatos, montaram barreiras, revistaram pessoas e veículos, desde as 21h30 até 01h30 da madrugada. Postos de observação ao longo das estradas foram montados, nos quais os policiais vigiaram os campos utilizando binóculos de visão notura.
quinta-feira, 9 de dezembro de 2010
Plebiscito? Onde?
Esquisitice sem fim foi esse tal plebiscito popular, convocado pela Campanha Nacional pelo Limite da Propriedade da Terra. A começar pelo estilo da votação...
Um plebiscito é uma forma de democracia direta em que o eleitorado é chamado a escolher entre duas ou mais opções. Já os organizadores do plebiscito popular, não-oficial, convocaram o povo para votar em uma única opção: a grande propriedade deve ser extinta! Não houve, na prática, espaço para opinião divergente. Os organizadores não queriam saber se o povo era a favor ou contra limitar a propriedade: em suas campanhas para que as pessoas participassem da votação, já recomendavam que se votasse a favor da limitação. Queriam que comparecêssemos às urnas não para dar nossa opinião a favor ou contra o latifúndio, mas somente contra.
Ora, isso não é plebiscito, eleição, nem sequer democracia.
O plebiscito não foi feito para saber a opinião dos brasileiros quanto ao tema das grandes propriedades, mas para, de fato, apresentar como legítima a pretensão de limitar a propriedade da terra no Brasil. Um dos objetivos dos organizadores da campanha é, segundo suas próprias palavras é a “[o]cupação das propriedades acima de 35 módulos, produtivas ou não.” Vejam, produtivas ou não. Basta que se tenha uma propriedade grande, para que seja invadida. Basta que alguém seja um grande proprietário rural, mesmo que produza, para se ver alijado de seu direito, previsto na Constituição. Isso é um crime! E um crime incentivado por vários grupos e associações! Nem mesmo a propriedade improdutiva pode ser invadida (necessitando, para sua desapropriação, de um processo rigoroso e justo), muito menos a produtiva. Só por que é grande? E mesmo que o plebiscito-campanha seja perdedor?
Ademais, com o resultado do tal plebiscito, anunciou a campanha: “Mais de meio milhão de pessoas se posicionou afirmativamente em relação à necessidade e à conveniência de se colocar um limite à propriedade da terra. Este é um indicador expressivo de que a sociedade brasileira vê a proposta como adequada. É uma amostragem do que pensa boa parcela do povo brasileiro.” Isso não é verdade. Não foi uma boa parcela do povo brasileiro que é contra o latifúndio produtivo, e sim boa parcela dos que votaram, considerando-se que, como iniciativa particular, já era esperado que os se dignaram a comparecer às urnas eram os justamente ligados à contestação da propriedade. Não foi o povo que votou, mas o “povo contra a propriedade rural”: óbvio que resultado seria favorável às propostas, uma vez que os organizadores da consulta, e que dela fizeram propaganda, já tinha escolhido um lado.
Enfim, meio milhão não é boa parcela coisa nenhuma de um povo de 190 milhões!
Cumpre, secundariamente, analisar a participação de pastorais sociais ligadas à CNBB. Embora se saiba que não é decisão da Conferência participar dessa campanha, e que mesmo a Assembléia Geral teria que votar essa participação, granjeando a unanimidade, o grau de ligação da CPT, do CIMI, da PJ e outros grupos com o plebiscito não ficou bem claro. Não basta que a CNBB diga que não está metida: se setores a ela ligados apóiam, e são, aliás, francamente incentivados por vários Bispos, como Dom Walmor de Oliveira – cf. http://www.limitedaterra.org.br/noticiasDetalhe.php?id=287 –, parece que estão tentando maquiar sua participação. Do que adianta dizer que a Família Silva não apóia determinada iniciativa, se o pai, a mãe e a maioria dos filhos adere a ela?
Alguns setores católicos, ligados aos postos de comando da CNBB, estão ao lado da campanha, do plebiscito e são, historicamente, contrários ao latifúndio, mesmo o produtivo. Não é de hoje que idéias esquerdistas tomam conta dos gabinetes eclesiásticos brasileiros.
O que nos alegra é a divergência que começa a surgir com mais vigor no seio do episcopado brasileiro. Muitos Bispos se levantam contra o plebiscito, contra a limitação da propriedade, contra o apoio dado pelas pastorais à campanha, e contra a falta de pulso da CNBB em coibir manifestações de perfil socialo-comunista. Isso é bom! Melhor seria se não tivéssemos Bispos esquerdistas, e todos fossem alinhados com a doutrina da Igreja, que diz ser legítima a propriedade e o direito sobre ele, e que não é pecado ser latifundiário. Mas já que não temos essa unanimidade na ortodoxia, que tenhamos a divergência conservadora contra a frouxidão pró-esquerda de certos Prelados.
Não só as pastorais sociais da CNBB estão erradas em se apresentarem, na prática, como representantes da Igreja nesse espúrio e antidemocrático plebiscito, como nem sequer há um direito ao católico de se posicionar contra a propriedade privada. Ao católico se proíbe compactuar com idéias da esquerda socialista.
Sabemos que a propriedade privada é um direito previsto na Constituição. Mais ainda: inscrito na lei natural, dada por Deus, como manifestação dos direitos familiares. A doutrina social da Igreja, de Leão XIII a Bento XVI, inspirada na patrística, no Evangelho, em Santo Tomás, é clara: há um direito natural à propriedade, e ela não pode ser limitada, embora sobre ela, claro, pese uma hipoteca social de produtividade e geração de emprego e renda.
A inobservância da função social da propriedade rural deve ser aferida caso a caso e comporta uma justa indenização. Não é o que pedem os fautores do dito plebiscito, os quais desejam desapropriar as terras sem indenização alguma. O fato de uma propriedade ser grande não a qualifica como improdutiva: nem todo latifúndio é improdutivo, como nem todo minifúndio é produtivo.
Tal campanha se insere na grande orquestração política que visa a subverter a ordem e a segurança pública, e a legitimar a invasão das fazendas Brasil afora. Nunca esqueçamos, todavia, que, além da referida votação ter sido uma piada contra o Estado de Direito, os esbulhos do MST são e continuarão a ser caso de polícia.
terça-feira, 7 de dezembro de 2010
O delegado de polícia, autoridade judiciária?
Em certos círculos acadêmicos e jurídicos, começa-se a tencionar a consideração do delegado de polícia como autoridade judiciária. Para tal, invocam-se argumentos os mais diversos, desde a redação do Código de Processo Penal até o próprio significado de “polícia judiciária”.
Destarte, iremos enfrentar alguns deles, demonstrando a nossa posição.
Inquérito policial, verdadeiro juízo de instrução
Um dos argumentos utilizados é justamente o de considerar o inquérito policial uma espécie de juízo de instrução. Sendo juízo, a autoridade que o preside, por mais que se a denomine delegado de polícia, só pode ser juiz, i.e., alguém revestido de autoridade judiciária. Nada mais lógico se realmente apreciarmos o inquérito com esse viés.
Certo é que o inquérito policial se constitui em um procedimento preparatório ao processo criminal, e, na linguagem do vulgo, poderia ser mesmo considerada uma instrução. Todavia, não se trata de um juízo. O caráter administrativo das peças que formam o inquérito policial é pacífico.
Nesse sentido, ainda que o delegado de polícia tenha poderes de decisão na presidência do inquérito policial, não são o suficiente para caracterizá-lo como autoridade judiciária. Ele não jurisdiciona, não “diz o Direito”, apenas o aplica em âmbito administrativo, mesmo que preparatório e informativo do ulterior processo penal. Não é o inquérito um juízo, de instrução que seja, mas um procedimento de natureza administrativa. Ele, como o juízo de instrução clássico da França, também prepara o processo judicial criminal, porém, igualmente como em outros Estados do Velho Mundo, o faz sem imiscuir-se na esfera do Poder Judiciário, merecendo autêntica pecha de ato administrativo.
Delegado de polícia, autoridade com funções de polícia judiciária
Outra alegação é de que a Carta Magna e a legislação infraconstitucional, ao utilizarem a expressão “polícia judiciária”, reconhecem a atividade do delegado de polícia como propriamente jurisdicional.
Nada mais falso – é o que diremos.
Polícia judiciária, segundo os doutrinadores, é a atividade que tem por missão precípua a apuração da materialidade das infrações penais e sua autoria. É assim chamada por ser uma tarefa preparatória ao processo judicial criminal, por coadjuvar a futura ação penal, levantando uma série de informações que, bem utilizadas pelo órgão do Ministério Público, influenciarão no livre convencimento do juiz, este sim autoridade jurisdicional.
Se a atividade de polícia judiciária é função policial, não função jurisdicional, o delegado de polícia é autoridade policial, não autoridade judiciária. A autoridade policial preside o inquérito, mais tarde usado como informação para um processo judicial, porém não está dentro da carreira judiciária, nem diz o Direito, não jurisdiciona.
A linguagem da Exposição de Motivos do Código de Processo Penal
Não se poderia deixar de elencar esse argumento, que, na visão dos defensores da autoridade judiciária do delegado de polícia, é considerado bastante forte.
É fato, reconhecemos, que a Exposição de Motivos do CPP, em seu item IV, utiliza os termos e expressões “instrução provisória” e “processo preparatório” para se referir ao inquérito policial. Também há a menção às decisões do delegado de polícia como sendo “juízo”, na frase que segue o:
Por mais perspicaz e circunspeta, a autoridade que dirige a investigação inicial, quando ainda perdura alarma provocado pelo crime, está sujeita a equívocos ou falsos juízos a priori, ou a sugestões tendenciosas.
Ora, é forçoso reconhecer que a Exposição de Motivos do CPP não se reveste de natureza legal. Não há nada em sua redação que seja preceptivo. Sua observância é nula. É mero comentário do autor da lei, sem força legislativa alguma.
Outrossim, as expressões utilizadas devem ser entendidas em seu contexto. Ainda que o inquérito seja instrução, não se trata aqui da chamada instrução processual. Até mesmo porque o próprio CPP vai falar, mais tarde, em seus artigos, da verdadeira instrução no curso do processo: a instrução criminal, esta sim ato jurisdicional. A instrução referida ao inquérito não é judicial, mas administrativa, e isso se infere, além do exposto, pelo adjetivo “provisória”. Antes de ser argumento favorável aos que defendem o delegado de polícia como autoridade judiciária, a citação desses vocábulos acabam por dar mais munição justamente aos que de tal tese – absolutamente minoritária, é bom que se diga – discordam.
Da mesma maneira, se deve situar bem a fórmula “processo preparatório”. Não é pela utilização do termo “processo” que o inquérito adquirirá natureza jurisdicional. Também no âmbito administrativo se fala em processo, e eles não têm, como é sabido, caráter judicial. Se o tivessem, não seriam administrativos, de vez que essas duas funções, ainda que exercidas também de modo atípico por outros Poderes do Estado que não os específicos e primordiais a elas vinculados, não se devem confundir. O que dizer, por fim, dos processos administrativos disciplinares? Neles não só consta o vocábulo “processo”, como há verdadeiro julgamento (no que parte da doutrina os classifica como exercício atípico de função judicial pelo Poder Executivo e pelo Poder Legislativo). Ainda assim, os processos administrativos disciplinares não fazem de seu presidente uma autoridade judicial.
Enfim, a palavra “juízo”, transcrita na citação supra, deve ser tomada em seu sentido lato, comum, como em “juízo de valor”. Realmente, como qualquer autoridade (militar, eclesiástica, executiva, legislativa, ministerial etc), o delegado de polícia deve fazer ponderações e emitir juízos, deve discernir entre uma coisa e outra, deve tomar decisões. Nada disso o torna juiz. O homem ordinário, mesmo sem autoridade, julga a cada instante, adota juízos de valor a cada passo. Nem por isso, ele é juiz. Da mesma forma, ainda que esse homem seja autoridade e profira juízos, no sentido comum, não se torna autoridade judiciária. O prefeito, o legislador, o comandante militar, o promotor de justiça, o bispo, o Papa, o presidente, são autoridades e emitem juízos, mas não são autoridades judiciárias coisa alguma. Igual caso é o do delegado de polícia.
O CPP e os termos “jurisdição” e “competência” no art. 4º
O Código de Processo Penal, ao utilizar, em seu art. 4º, antes do advento da Lei 9043/95, o termo “jurisdição” aplicado à função do delegado de polícia, parecia indicar que este teria uma autoridade judiciária, dizem os defensores da teoria ora discutida. Com a mudança de “jurisdição” para “circunscrição”, essa discussão cai por terra, tendo em vista a nova nomenclatura, que nada mais faz do que corrigir um termo impreciso.
De outra sorte, ainda que restando, no parágrafo único do referido artigo, a palavra “competência” para se referir ao delegado de polícia, quando deveria utilizar “atribuição”, não se deve fazer a ilação de que, com isso só, sua autoridade seja judiciária. É bem verdade que competência é termo utilizado, juridicamente, para os órgãos do Poder Judiciário. Competência é a medida da jurisdição, bem o sabemos. Todavia, mera interpretação gramatical da norma, sem o seu sentido teleológico e, mesmo, integral, faz cair o artigo em um absurdo.
Nesse diapasão, há que se fazer uma interpretação sistemática deste artigo com o restante do Código, em que fica clara a função administrativa do delegado de polícia, nitidamente diferenciada da jurisdicional. Mais ainda, é preciso harmonizar o Código com as demais normas de nosso ordenamento, fazendo, prevalecer, além disso, os comandos legais da Constituição Federal. Em todas essas leis, e na Carta Política de 88, estão bem separadas as funções estatais, distribuídas aos Poderes de modo típico e atípico. E, se bem que a função jurisdicional possa ser exercida pelo Poder Legislativo quando julga o chefe do Poder Executivo em crimes de responsabilidade, e pelo Poder Executivo (e Legislativo), segundo autores, na prolação de decisões em processo administrativo disciplinar, não há nenhuma menção à tarefa jurisdicional a ser exercida, eventualmente, pelo delegado de polícia, mesmo como função atípica. Além disso, mesmo que houvesse essa menção, isso não o tornaria, por si só, autoridade judicial, de vez que mesmo o Senado julgando o presidente da República em crimes de responsabilidade, e os ministros de Estado e comandantes das Forças Armadas nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles, não é, por meramente exercer, em casos tópicos, função jurisdicional, uma autoridade judiciária. O exercício de função atípica, i.e., o exercício de função típica de um Poder por outro, não torna esse outro equivalente àquele em natureza.
De outra sorte, e agora concluímos nossa breve explanação, não há que se dar muita relevância ao uso do termo “competência” quando usado em relação à tarefa do delegado de polícia. Aqui, o vocábulo está como sinônimo de atribuição, pois empregado em seu sentido popular, com notável atecnia do legislador, tal qual reconhecido pela unanimidade da doutrina processualista.
segunda-feira, 6 de dezembro de 2010
Chefe de gangue ganha direito de ser chamado de "senhor"
Colin Gunn cumpre 35 anos por assassinato
Um dos presos considerados mais perigosos da Grã-Bretanha ganhou o direito de ser chamado de "senhor" pelos carcereiros da penitenciária de Londres onde cumpre pena de 35 anos por assassinato.
Colin Gunn, classificado como preso de alta periculosidade, é agora chamado de "senhor Gunn" após submeter uma reclamação ao ombudsman (ouvidor) do sistema prisional britânico.
Segundo a mídia britânica, a polícia atribui a Gunn cerca de 50 tiroteios e pelo menos seis mortes. Ele foi condenado pelo assassinato de um casal de meia idade, pais de um inimigo.
"Apesar de não haver uma política nacional que estipule como os prisioneiros devem ser chamados, todas as prisões devem ter recebido claras instruções sobre isso. Não é mais aceitável chamar os prisioneiros só pelo sobrenome", afirmou o prisioneiro na carta.
Gunn também oferece instruções para os outros prisioneiros que quiserem contestar a forma pela qual são chamados pelos carcereiros, citando os formulários necessários e os organismos para os quais encaminhar as reclamações.
"Você ganhará o caso, e sua prisão sabe disso, mas tentará de tudo para escapar. A lei está do seu lado, então não desista", afirma o prisioneiro. "Vocês não precisam mais ser humilhados por funcionários rudes e ignorantes. Lutem pelos seus direitos", conclui Gunn.
Colin Gunn está preso desde 2006 e já passou por várias penitenciárias do país. Ele é transferido constantemente, de acordo com a política do sistema penitenciário, para evitar que organize grupos e influencie outros prisioneiros.
Em janeiro, uma reportagem do jornal The Sunday Times revelou que Gunn mantinha, de sua cela, uma conta no Facebook da qual enviava ameaças a desafetos.
"Eu vou voltar para casa um dia e não posso esperar para olhar nos olhos de certas pessoas e ver o medo de me verem ali", dizia uma das mensagens na conta, que foi fechada posteriormente. A polícia suspeita também que Gunn continue a chefiar sua gangue com ordens de dentro da prisão.
sexta-feira, 3 de dezembro de 2010
OPERAÇÃO REI DO GADO, EM SANTA VITÓRIA PARA COMBATE AO ABIGEATO: UM PRESO E DEZOITO BOIS RECUPERADOS
Durante a manhã e a tarde desta sexta-feira (3/dez), agentes das DPs de Santa Vitória do Palmar e do Chuí, comandados pelo Delegado Rafael Vitola Brodbeck e pela Delegada Anne Vontobel, deflagraram a Operação Rei do Gado.
Com base em informações e investigações prévias, os policiais percorreram 260km, a maior parte em estradas de chão pelo interior do município de Santa Vitória do Palmar, visando a encontrar vacas e bois furtados de propriedades da região, e que estariam nas fazendas de um suposto abigeatário, Luiz Carlos Schnarndorf Ribeiro, 47 anos, de alcunha justamente “Rei do Gado”, dando assim nome à operação. Após a confirmação de que o gado realmente lá estava, sendo analisadas as marcas e sinais, dezoito bois foram recuperados pela Polícia Civil.
Foi iniciada, então, perseguição imediata a Luiz Carlos, a quem foi dada voz de prisão em flagrante pelo delito de receptação qualificada. Luiz Carlos foi encontrado em uma estrada vicinal, dirigindo-se a outra de suas propriedades.
Há informações de que Luiz Carlos teria vendido parte do gado furtado para um frigorífico em Pelotas, o que desencadeou uma pronta ação da equipe da DEFREC local, liderados pelo titular, Delegado Gustavo Silveira Pereira, confirmando a transação de animais pelo suspeito, restando apenas apurar se estes também eram furtados.
O Auto de Prisão em Flagrante (APF) foi lavrado na DP de Santa Vitória do Palmar, e, segundo o Delegado Brodbeck, o acusado poderá pegar de três a oito anos de prisão, ou, se apurada a responsabilidade no próprio abigeato, de dois a oito por furto qualificado.
A organização da polícia dos fins da Idade Média aos primeiros anos da Renascença
“Nós somos ainda os herdeiros de longos séculos nos quais se formou na Europa uma Civilização inspirada pelo cristianismo. (...) Na Idade Média, com certa coesão do continente inteiro, a Europa constrói uma Civilização luminosa da qual permanecem muitos testemunhos.” (Sua Santidade, o Papa João Paulo II. Discurso à CEE, em Bruxelas, 21 de maio de 1985, in “L´Osservatore Romano”, 22 de maio de 1985)
1. Situação geral da vida na Idade Média
Não obstante muitas outras sociedades terem se destacado em vários campos da ação humana, por sua grandeza em distintos aspectos, em toda a história, apenas uma civilização saiu do nada, do caos, para se tornar coesa e hegemônica: a ocidental, criada na Idade Média pelo ethos cristão, dos escombros do mundo greco-romano.
A Cristandade, essa civilização cristã, amálgama perfeito entre a cultura do invasor germano (e também eslavo, húngaro e nórdico), o direito romano e a filosofia helênica, temperados com o fermento do Evangelho, ao contrário de outras grandiosas sociedades humanas (como a egípcia dos faraós, a chinesa, a mesopotâmica, a persa, a asteca etc), não se estagnou ou decaiu após o alto nível alcançado rapidamente. O que temos hoje de conquistas em diferentes áreas do conhecimento deveu-se, sobretudo, ao que, na Idade Média, se criou ou, pelo menos, lançou-se as bases. As técnicas de agricultura e pecuária, o desenvolvimento das artes plásticas e liberais, o culto da política e do Direito como sistemas lógico-racionais, a arquitetura como uma beleza até então ignorada, a invenção das universidades e dos hospitais, a disseminação das escolas, a noção de um Direito Internacional, o descobrimento de remédios e a criação de bebidas, e a própria noção do que seja ciência, têm seu nascedouro na civilização medieval. Segundo inúmeros historiadores de renome[1], tudo isso não só surgiu no Medievo cristão, como não poderia ter surgido, ao menos não nos moldes em que hoje os conhecemos, não fosse a ação decisiva da Igreja. Tais avanços não são um adendo na história medieval ou uma coincidência apenas: são decorrência necessária do modo católico de ver o mundo. A fé, para a religião cristã, nunca foi um conjunto de mitos para explicar o que não se sabe, e sim uma virtude que deve sempre estar em diálogo com a razão: fides et ratio. Daí que uma impulsione a outra para vôos cada vez mais altos, em benefício do ser humano.
Do caos de um Império destruído militar e moralmente, surge, pela obra dos beneditinos, a Civilização. Fundam-se as primeiras universidades, sob a proteção e o incentivo da Igreja. Os territórios ao redor dos mosteiros beneficiam-se das técnicas de agricultura, elevadas a um patamar nunca visto, e desenvolvidas pelos monges para a sua subsistência – seguindo a regra de São Bento: ora et labora. O trabalho manual é dignificado – coisa absolutamente nova na história. Novas tecnologias são descobertas e logo comunicadas a todos. A idéia de ciência é concebida a partir da crença em um Deus que, longe de se esconder em mistérios, revela-se ao homem, e de uma teologia que não lança mão de explicações míticas, mas incentiva a todos para que compreendam o que crêem – aliás, para melhor crer. A legislação romana é redescoberta, solidificada, compendiada e corrigida. Surge o Direito Internacional e a economia compreendida como ciência. A caridade cristã é a raiz de iniciativas as mais diversas – como os hotéis e pousadas gratuitas para peregrinos, pobres e viajantes, sempre anexos aos mosteiros, das grandes abadias aos simples priorados; e os hospitais.
É oportuno mencionar que a concepção de uma sociedade hierárquica (ainda que não estática, como, equivocadamente pensam alguns historiadores), inspirada na vassalagem dos monges ao abade, e de todos diante do Criador, ainda que com raízes igualmente na organização militar romana e na vida civil das tribos bárbaras, permitiu toda essa reconstrução depois do desmoronamento do Império. Mesmo com os inevitáveis abusos e erros de qualquer agrupamento humano, foi a Idade Média um exemplo de estrutura social baseada em uma visão de dignidade da pessoa humana, de respeito aos valores tradicionais, e de culto à hierarquia como mola propulsora de um progresso autêntico. Há, nisso, toda uma compreensão integral do mundo. Hoje, diríamos um entendimento holístico. A ciência, a arte, a religião, o direito, a vida social, o militarismo, tudo está perfeitamente harmonizado nesse modus vivendi.
Os europeus do Medievo, ademais, não restringiam esse juízo integral a sua vida local. A própria noção do que seja a Europa, mesmo gestada em sua essência na cultura greco-romana, só vai nascer, de fato, na Idade Média, e é um produto muito mais da filosofia, do ethos, da alma do povo, do que de geografia física.
Se olharmos, aliás, para o mapa, veremos que as fronteiras que delimitam a Europa com a Ásia são, geograficamente, de um artificialismo bastante visível. O território é contínuo. Não está separada a Europa da Ásia como está, por exemplo, da Oceania ou da América. Europa e Ásia formam uma só unidade no plano geográfico natural: a Eurásia. Não são os Urais, na Rússia, que separam os europeus dos asiáticos, porém a cultura que com os primeiros se formou. A Europa é o resultado de anos de experiência de um unificado Império Romano, com as valiosas contribuições gregas, recebendo, outrossim, os costumes germânicos dos bárbaros que, unidos aos povos celtas já submetidos às legiões de César, souberam construir um mundo todo próprio.[2]
Os reinos germânicos tomaram o lugar das antigas províncias romanas e nações celtas. Pela fragmentação hereditária, tais reinos, por sua vez, favoreceram o surgimento do regime feudal, criado a partir da dotação de terras a chefes militares e civis que tenham se destacado na defesa de seu povo e no serviço aos monarcas e da natural busca de proteção por parte daqueles que não tinham meios de prover a sua própria defesa.
Aplicou-se, nesse sistema, o conhecido princípio da subsidiariedade, emanação do pensamento social do Evangelho e louvado por todos os juristas contemporâneos.
2. A organização dos Estados medievais e a persecução criminal
O Império Carolíngio é antes de mais nada uma poderosa afirmação do Ocidente que se encontrava seriamente ameaçado de completa desagregação. Compreende-se pois a importância histórica de seu estudo para a compreensão do futuro desenvolvimento da Civilização Ocidental.
Inspirado na idéia de unidade imperial mantida através dos séculos que sucederam à queda do Antigo Império do Ocidente, apoiado nas instituições francas desenvolvidas na época merovíngia e, sobretudo, animado pelo ideal cristão, o Império Carolíngio aparece como uma construção político-religiosa de proporções tais que seu exemplo imprimirá, por séculos, uma fisionomia peculiar à Europa Medieval, convertendo-se para muitos governantes num ideal digno de admiração e imitação.[3]
Feitas tais considerações propedêuticas, passamos, neste ponto, a transcrever trechos de outro estudo por nós desenvolvido, de particular importância para a correta apreensão da organização política medieval e de como era natural que dela surgisse a persecução penal e a ação policial hodiernamente conhecidas:
De todos os Reinos Bárbaros, sobressaiu-se o dos francos. Já na dinastia merovíngia coube a eles o papel de defesa da Europa contra os demais invasores, sobretudo normandos, árabes muçulmanos e mouros. Carlos Martel, líder franco, é quem garante a vitória sobre o Islã, em 732, na famosa Batalha de Poitiers. Nela, Martel “foi o campeão da Cruz, o campeão da Latinidade. Em uma hora dramática, encarnou uma raça, uma Fé, uma civilização. Tal vocação era um privilégio e uma força: o ela da dinastia decuplicado. O filho de Pepino ressuscitou Clóvis e Aécio.”[4]
O povo franco, de todos os bárbaros germânicos, foi o que melhor entendeu e assimilou os costumes e instituições dos romanos. Cedo adotou o latim e mesmo defendeu as ruínas do antigo Império do Ocidente de uma germanização maior, o que fez a França atual e vários outros países a Oeste conservarem características mais latinas, ao passo em que o território alemão, austríaco e holandês, originalmente ocupado pelos próprios bárbaros fora das fronteiras romanas, permaneceu germano.
Também a adesão ao cristianismo pelos francos deu-se de modo diferente, em relação às demais Nações germânicas. Estas se contaminaram com a doutrina herética do arianismo, a qual negava a natureza divina de Cristo. Os francos, ao contrário, converteram-se diretamente à Igreja Católica. Clóvis, rei franco, casou-se com a princesa burgúndia Clotilde, católica de vida muito virtuosa, mais tarde canonizada. Pela ação de sua esposa, Santa Clotilde, o rei Clóvis pediu o Batismo, e o recebeu das mãos de São Remígio, no Natal de 498 ou 499. A exemplo do monarca, três mil soldados também se converteram, abjurando os deuses pagãos e sendo batizados. Santo Avito de Viena saúda Clóvis com uma carta na qual faz constar seu júbilo: Vestra fides nostra Victoria est – vossa fé é a nossa vitória.
Caindo, no século VIII, a dinastia merovíngia, assume o trono Pepino, o Breve, filho de Carlos Martel, o herói de Poitiers, por sua vez filho de Pepino de Heristal. É o início da Casa dos Carolíngios, que terá em Carlos Magno, filho de Pepino, o Breve, seu consolidador e mais nobre representante.
Rei dos francos em 798, Carlos Magno, por sua atitude em favor dos povos e da Igreja, e por ter reunificado politicamente grande parte do desfeito Império Romano do Ocidente, é o pai da Europa. Nada difere, em verdade, a Ásia da Europa do ponto de vista da geografia física. Os limites traçados poderiam, num certo sentido, ser considerados arbitrários. Limite substancial é, isto sim, a civilização. Diferença fundamental a separar a Eurásia em dois continentes distintos temos na cultura, no povo. De fato, à cultura greco-romana – já fundida com a celta dos primeiros habitantes das províncias européias – uniu-se a germânica, ambas temperadas com o cristianismo. Da nova mentalidade cultural nascida temos a Idade Média, vê-se a própria Europa. E a consolidação das fronteiras e disseminação dessa cultura cristã ocidental foi obra principalmente de Carlos Magno. Falar da Europa é dizer cultura cristã, com elementos clássicos e bárbaros. Falar da Europa é lembrar Carlos Magno. (...)
“As modernas indagações concordaram em reter que a Europa tomou forma concreta nos tempos dos carolíngios, especialmente sob Carlos Magno; e quem dá importância às datas precisas pode até indicar o dia do nascimento da ‘senhora’ Europa, qual seja o Natal do ano 800, quando o Papa Leão III cingiu a cabeça de Carlos Magno com a coroa imperial em Roma.”[5]
(...)
Nasceu o futuro Imperador franco na Nêustria, região gaulesa atualmente na França. Era o ano de 742. Como dissemos, teve por pai Pepino, o Breve, e avô Carlos Martel. Seu reinado sobre o Reino Franco unificado após a morte de seu irmão, Carlomano, em 771, foi marcado pela luta contra os lombardos – povo germânico –, que ameaçavam o Papa Adriano I e seu Estado doado por Pepino; contra os saxões – trinta e três anos contra esses germanos! –; contra os bávaros, os quais traíram Carlos Magno; contra os muçulmanos da Espanha; e contra os avaros, povo de raça mongol aparentado com os hunos e ferozes como estes, nunca deixando em paz os europeus. A meta principal destas lutas não era a conquista territorial, mas a defesa da Cristandade. Carlos Magno gostava de atribuir-se o título de devotus Sanctae Ecclesiae defensor, humiliusque adiutor in omnibus Apostolicae Sedis – devoto defensor da Santa Igreja, humilde auxiliar da Sé Apostólica em tudo.
(...)
Anexando a seus domínios outros reinos, como a Bavária e a Saxônia – que iriam constituir a Alemanha medieval –, e a Lombardia, Carlos Magno comportava-se mais como Imperador do que como rei dos francos. Soberanos de outros Estados independentes tinham-no por protetor e, inclusive, lhe prestavam vassalagem. Alastrava-se a opinião de que Carlos iria restaurar o Império, há séculos demolidos pelos bárbaros. Um bárbaro – Carlos Magno era franco – como restaurador do Império Ocidental pelos bárbaros invadido e destruído. Mas um Imperador já existia em Constantinopla; e o Império Bizantino continuava o Romano, e não era preciso outro no Ocidente, que, segundo o pensamento de alguns gregos, ainda era, apesar de suas províncias transformadas em Estados bárbaros independentes, vassalo do basileu, ao menos juridicamente. Ter um Imperador para o Ocidente seria uma usurpação, ainda mais quando em suas veias não corria sangue romano ou grego.
“Como no dia santo do Natal ele tivesse entrado na basílica do bem-aventurado Pedro, Apóstolo, para as celebrações solenes da Missa, e como estivesse junto ao altar com a cabeça inclinada, em oração, o Papa Leão impôs-lhe uma coroa sobre a cabeça, tendo o povo romano aclamando: A Carlos, Augusto, coroado por Deus, grande e pacífico Imperador dos Romanos, vida e vitória. Depois dessas aclamações, foi reverenciado pelo Pontífice, segundo o costume dos príncipes antigos e, omitindo-se doravante o título de patrício, foi chamado Imperador Augusto.”[6]
Nada havia acima do Papa. Ele poderia, então, sagrar o rei Carlos Imperador Romano, confirmando a persistência da noção de Império no Ocidente cristão.
(...)
A Europa cristã, fundada por Carlos Magno quando unifica os principais reinos sob um único Império, compartilha uma cultura comum. É certo, todavia, que as nuances de cada povo são respeitadas, no que, com a chegada do feudalismo, darão novo vigor ao sentimento de nacionalidade – nacionalidade esta que não se preocupa em obrigatoriamente ter um Estado associado a si, como pregarão os liberais, muitos menos em reforçar o caráter segregacionista no estilo dos totalitarismos do século XX; tampouco, em outro extremo, a idéia de fraternidade universal e solidariedade cristã em uma Europa unida não descamba para uma paralisação da idéia nacional ou engessamento das tradições locais legítimas, como parece querer a atual filosofia regente da União Européia.
O Império restaurado exercia, sobre as Nações a ele incorporadas, soberania e suserania. Em um único Estado, o Império Carolíngio, subsistiam diferentes Nações. E cada uma, bem como outros territórios transnacionais, reconhecendo o poder supremo do Imperador, detinha vasta autonomia. Respeitava-se, pois, o católico princípio da subsidiariedade, oposto de toda filosofia totalitária. Um mesmo Império, dentro do qual foram surgindo feudos, territórios autônomos dados pelos monarcas aos militares ou gentis-homens que se destacavam nos serviços prestados à Coroa. A instituição feudal baseou-se na lealdade dos grandes senhores de terra que apoiaram os reis francos na luta contra os invasores que vinham do Norte – os vikings, também chamados normandos ou nórdicos, e outros. Essa organização hierárquica que proporcionou o nascimento de uma elite moral e política a conduzir o povo, uma nobreza ligada às tradições próprias de cada estirpe e cultora dos valores da família e da Nação. Ducados, baronatos, condados, marcas, principados, reinos, tudo isso co-existia dentro de um único Império: autêntica federação ou, segundo alguns autores, confederação. Outrossim, mesmo em relação a Estados europeus independentes, i.e., fora das fronteiras do Império, como a Inglaterra e os reinos da Península Ibérica, usava o Imperador de sadia e natural liderança moral. A ele, se não lhe reconheciam a soberania sobre seus territórios – pois que eram Estados independentes, com sua própria soberania –, prestavam ao menos, por vezes, a vassalagem, reconhecendo-lhe a suserania, o que dava ao Imperador caráter de chefe moral de toda a Europa e árbitro auxiliar do Papa nos conflitos – raros, no Medievo – que surgiam. A Europa toda, se não era completamente súdita do Império – como o eram as futuras França, Alemanha, Bélgica etc –, era, entretanto, vassala do mesmo, reconhecendo “livremente a superioridade de Carlos Magno.”[7]
Quanto à natureza jurídica do título de Imperador dado a Carlos Magno, deve ser afastada a idéia de uma espúria translatio Imperii a Graecis ad Francos, i.e., de uma transferência do Império dos gregos aos francos. Nem Carlos Magno sem São Leão III cogitaram em suprimir o título de Imperador do basileu constantinopolitano.
Alguns estudiosos crêem ter havido, na coroação imperial do rei franco uma restauração do Império Romano do Ocidente. Contudo, o Império de Carlos Magno não correspondia exatamente à Pars Occidentis: o Imperados era germano, as instituições mescladas entre o germânico e o romano, a autonomia feudal das diversas Nações não equivalia ao centralismo e à romanização do antigo Império. Por isso, é mais exato, segundo Giordani, falar de um Império Cristão, ou, no dizer de Koschaker, de um Império Franco Cristão. Com efeito, além de Imperador do Ocidente, Carlos Magno era rex Francorum et Langobardorum – rei dos francos e dos lombardos.
Entre os grandes feitos da Europa Católica de Carlos Magno, de seu Império e dos Estados que, mesmo independentes, em sua órbita gravitavam, está a chamada Renascença Carolíngia: a promoção da cultura, da educação popular e de elite, o patrocínio das artes, a intensa atividade legislativa, o ensino dos clássicos, a valorização da arquitetura e da decoração como sinais de beleza transcendentes e que, por isso mesmo, levava a Deus pela contemplação da ordem, as miniaturas, as catedrais e os teatros, o incentivo à literatura. (...)
Do reino de Carlos, o Calvo, surgiria a França atual, que tomou sua configuração histórica a partir dos capetíngios. A Alemanha de Luís, no futuro, sob Otão I, o Grande, em 962, restaurará, novamente o Império. É o início do Sacro Império Romano Germânico, que, como o Carolíngio, será soberano de várias Nações, e exercerá sadia influência, sob a forma de suserania por vezes, nos demais Estados independentes e soberanos da Europa. Otão I, Imperador, continua a obra de Carlos Magno em proteger a Europa Cristã, em dar uma unidade política à Europa que já tem unidade cultural, respeitando, todavia, as particularidades locais, e, acima de tudo, guiando-se pela moral clássica.[8]
Ilustração 1 - Mapa do Sacro Império Romano Germânico, em 1512
É este o mundo em que surge a idéia de persecução criminal como uma satisfação frente a uma afronta também ao corpo social, não só ao indivíduo. Claro que não se vai entender, de modo radical, como fizeram, erroneamente, os absolutistas posteriores, o crime como uma ofensa apenas ao Estado – visão que predominou em todas as escolas de pensamento liberal, tomadas aqui em seu sentido lato: modernas, totalitárias etc. Evidentemente, por sua filosofia cristã e humanista, a Europa medieval, organizada como acima descrito, não poderá ver o delito como mero ilícito privado, que só atinge a uma pessoa, e que, como tal, deve ser resolvido na base na vingança privada que tanta importância teve na Antiguidade. O crime atinge, primariamente, o indivíduo, isso é certo, porém rasga todo o tecido social. Como injúria à pessoa e à sociedade, então, deve ser punido e perseguido tanto pela própria vítima, em ações legalmente delimitadas, quanto pela autoridade encarregada da organização social: o Estado.
Também as noções civilizacionais inauguradas no Medievo permitiram que, mesmo persistindo abusos – como, ademais, existem até hoje –, que a dignidade do ser humano, mesmo delinqüente – e ainda mais quando mero suspeito –, fossem levadas em conta. De igual forma, a idéia de justiça e de império da lei, tão caras a Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino, e retomadas pelos principais comentadores tomistas (e, mais tarde, pelos neo-escolásticos de Salamanca, como Suárez e Francisco de Vitória), aos poucos se disseminavam e, sem dúvida, contribuíram para a idéia da criação de corpos especializados em segurança pública, que não só fizessem a guarda dos populares e dos nobres, como fossem atrás dos malfeitores, executassem técnicas de vigilância mais eficazes, e, uma vez cometido o delito, se dedicassem a apurar os fatos e a encontrar os criminosos.
3. Os primeiros corpos policiais organizados à maneira contemporânea[9]
3.1. Milícias urbanas e rurais
Nesse contexto político e social, as guardas e corpos policiais existentes desde as primeiras sociedades vão sendo organizadas em moldes mais profissionais. Destacam-se as milícias urbanas, ao comando dos burgomestres, e as rurais, chefiadas pelos senhores feudais, conforme a organização social e política por nós já abordada. Em auxilio a essas milícias públicas, associações privadas, como as guildas, corporações de ofício e fraternidades (religiosas e leigas), estabelecem também os seus serviços de segurança, para defesa de seus membros e dos demais do povo.
Agentes públicos à paisana são utilizados para a manutenção da ordem e a apuração dos delitos. Igualmente, corpos militares assumem funções policiais na cidade e no campo.
As classes de pessoas mais perigosas, como vagabundos e mendigos, são confiadas, por um lado à caridade cristã e, por outro, a uma liderança escolhida dentre eles mesmo, mas de confiança da autoridade local: o “rei dos patifes” ou “rei dos vadios”.
Os custodes nundinarum – guardas de feiras – são, por sua vez, amplamente utilizados como polícia de manutenção da ordem e vigilância ostensiva de concentrações populares, notadamente, como o nome indica, comerciais e de entretenimento.
3.2. Os corpos militares com função policial
Na França, uma atividade singular é observada: nas tréguas durante a Guerra dos Cem Anos, alguns militares desertam e, junto de mercenários, continuam a pilhar as propriedades e a abusar de sua função. Uma polícia militar é, então, criada por João, o Bom, no século XIV, para caçar esses desertores, impedir os excessos e proteger a retaguarda as divisões em marcha. Sob a chefia do mais alto comandante do exército francês, o Marechal-de-França, essa polícia é conhecida, por isso mesmo, sob a denominação de Maréchaussée. Corpo policial montado, de natureza militar, aos poucos passa também a agir fora das tropas regulares, policiando estradas, campos, fazendas e pequenas aldeias. A Maréchaussée continua sua história até os dias hoje, com o nome de Gendarmerie, com idêntica natureza militar, e com atribuição de policiamento ostensivo e judiciário nas zonas rurais, bem como na manutenção da ordem pública por ocasião de grandes concentrações urbanas e emprego de unidades especializadas em missões de alto risco ou de importância nacional. Ao lado da Gendarmaria, a Polícia Nacional francesa cuida do patrulhamento ostensivo e das funções judiciárias em cidades médias e grandes, tendo esta sua origem bem mais tarde, por ocasião da Revolução – unificando as polícias locais.
De outra sorte, em vários locais da Europa, Ordens de cavalaria, em que militares tomam hábitos religiosos e professam votos de pobreza, castidade e obediência, asseguram, além da guerra e da caridade em seus fortes e hospitais, a segurança dos peregrinos.
Enfim, as milícias locais passam não depender apenas dos burgomestres e senhores, e passam a correlacionar-se com outras corporações para troca de informação e treinamento, e melhor coordenação do trabalho. É assim, por exemplo, na Espanha, em que as fraternidades (quer as privadas, quer as erigidas pela autoridade pública) agrupam-se, como veremos adiante, na Santa Hermandad.
3.3. A polícia na Inglaterra
Após as invasões vikings, com a conseqüente unificação dos reinos da Bretanha e o amálgama entre os celtas (bretões, irlandeses, galeses e pictos), os germanos (anglos e saxões) e os normandos, novas formas de pacificação social e manutenção da ordem são difundidas pelas ilhas. A centralização política e administrativa, sem ferir a subsidiariedade representada pelos senhores locais, faz-se sentir, nesse campo da polícia, pela figura de um representante da Coroa nos territórios, o sheriff, nomenclatura de origem árabe, logo adotada pela cultura inglesa por ocasião das cruzadas. O xerife por aplicar multas, tendo, pois, função judiciária, e dirige as tarefas policiais a cargo dos hundreds e dos tythings.
Embora representante da Coroa, como o é todo funcionário público inglês, o xerife é o chefe de uma polícia local, mantida e supervisionada pelas autoridades de um condado ou de uma cidade. Tal municipalização das forças de segurança é uma característica observada até hoje. Não há, na Inglaterra, uma polícia de feições nacionais. Mesmo a Scotland Yard, mundialmente famosa e representante, no Reino Unido, dos escritórios da Interpol, é uma polícia local: a polícia metropolitana de Londres, ou Met.
3.4. Os quadrilheiros de Portugal
Os portugueses foram os primeiros ibéricos a vencer a guerra da Reconquista contra os mouros invasores. Bem cedo puderam garantir sua independência e criar corporações policiais aos moldes mais modernos. Para isso, aproveitaram toda a sua experiência militar, quer dos conflitos intestinos, quer da participação em cruzadas.
Não tardou para o profissionalismo fosse uma marca do policiamento luso, com divisão de circunscrições para a atuação dos chamados quadrilheiros, polícia de vigilância e manutenção da ordem, bem como, subsidiariamente, apuração de delitos e formação da prova.
Tempo depois, esses mesmos quadrilheiros evoluíram para a Intendência Geral de Polícia da Corte, criada em 1780, que mudou seu nome para Polícia Civil em 1867. Foi reorganizada em 1922, separando-se em duas corporações autônomas: uma adotou o nome de Polícia de Segurança Pública, um corpo policial ostensivo e fardado, mas de natureza civil; e a outra, a Polícia Judiciária, igualmente civil, mas sem farda e, como a denominação indica, encarregada da formação da culpa e apuração das provas dos delitos cometidos.
A Intendência Geral de Polícia deu origem também à Guarda Real de Polícia de Lisboa e, no Brasil, com a transferência da corte, à Guarda Real de Polícia do Rio de Janeiro. A Guarda de Lisboa originou a Guarda Nacional Republicana, uma polícia de natureza militar, encarregada do policiamento ostensivo nas áreas rurais de Portugal, bem como da segurança de grandes eventos públicos e das autoridades constituídas e seus prédios. A Guarda do Rio desenvolveu-se na atual Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro e na Polícia Militar do Distrito Federal, modelo logo adotado em todas as demais unidades federativas brasileiras.
3.4. A Santa Hermandad
Os diversos reinos que formavam a Espanha, durante a Reconquista aos mouros invasores, proveram, conforme a época, distintos corpos de milícia destinados não à guerra, e sim à segurança interna de seus súditos. Por agruparem pessoas que verdadeiramente se consagravam à caça dos malfeitores, ao patrulhamento das terras e cidades, e à apuração dos delitos, e à proteção do povo contra eventuais desmandos de senhores feudais e autoridades locais, tais corpos policiais foram chamados de irmandades, fraternidades. Com efeito, em muito se assemelhavam, no espírito e na organização, às irmandades religiosas, com seus hábitos e regras de vida.
Organizadas em caráter local desde os séculos XI, em Castela, e XII, nas Astúrias, tais irmandades foram, aos poucos, aumentando seu efetivo e suas atribuições. No devido tempo, outrossim, verificou-se um processo unificador entre as irmandades de uma mesma região ou reino. Em 1295, na cidade de Valladolid, uma Junta de Procuradores das Irmandades do Reino de Leão foi convocada para traçar planos em vistas a manter certa unidade de ação e de critérios. Já em 1300, as irmandades de Toledo e de Talavera, em Castela, uniram-se em uma federação, a que, dois anos depois, somo-se a de Villa Real. Em 1369, tal unidade entre as irmandades é tamanha que elas ganham novas atribuições: surge, nas Cortes de Toro, um cargo de juiz próprio das irmandades, para julgamento dos criminosos capturados pelas mesmas. A Henrique IV, rei de Castela, coube uma tentativa de criação de uma Irmandade Geral, o que foi aprovado em 1473, mas que não chegou a efetivar-se.
Enfim, em 1476, sob as Cortes de Madrigal, tendo à frente os Reis Católicos, Fernando de Aragão e Isabel de Castela, fundou-se um corpo policial militar, aos moldes modernos, com a junção de todas as irmandades regionais, sob um único comandante: a Santa Hermandad. Aliás, essa corporação teve decisiva importância na última batalha da Reconquista: a tomada de Granada, 1492, com a plena vitória sobre os sarracenos e conseqüente unificação da Espanha.
Ilustração 2 - Membros da Santa Hermandad, pioneira das polícias contemporâneas
A Santa Hermandad, além de executar as funções de polícia preventiva e judiciária, destacou-se como força bélica, o que a caracteriza como um primeiro exército regular espanhol de feições profissionais e nacionais[10]. Aos fins da Idade Média, tal força policial contava com cerca de 2 mil homens de infantaria e patrulhamento, além dos arqueiros que, em cada cidade, dedicavam-se a perseguir os delinqüentes e a defender os muros. Vê-se, portanto, que a Santa Hermandad é a precursora da atual polícia espanhola e também das forças armadas.
Os Reis Católicos tiveram uma visão surpreendentemente nova ao combinar, de maneira até então inédita, a ação militar e a policial. É certo que outras instituições policial-militares existiam. O modelo espanhol, entretanto, era um tanto distinto, fazendo os militares apoiar-se no povo, na comunidade – o que hoje chamaríamos “policiamento comunitário” –, e protegendo-o de ocasionais desmandos e ambições de alguns nobres. Tão forte foi o apoio dado pela Coroa unificada de Espanha à Santa Hermandad que, em 15 de janeiro de 1488, a Junta Geral da força elevou seu efetivo para dez mil homens de infantaria, entre os quais trezentos espingardeiros, dois mil e quinhentos soldados encouraçados (com armaduras, lanças e espadas), e dois mil e quinhentos arqueiros.
Ao lado da Santa Hermandad, corpos policiais locais foram surgindo, para garantir o cumprimento de diversas missões: policiamento ostensivo, manutenção da ordem, e polícia judiciária. Isso diminui a força da Hermandad, até sua total extinção, em 1834. Todavia, dez anos mais tarde, uma nova polícia nacional, de caráter também militar, como a Santa Hermandad, e considerada como sua sucessora, foi criada, pelo decreto de 28 de março: a Guarda Civil, que até hoje continua a desempenhar, valorosamente, sua tarefa de proteção aos cidadãos espanhóis.
3.5. O preboste de Paris e a polícia do rei São Luís IX
Tomando as irmandades espanholas e os quadrilheiros portugueses como exemplo, novas formas de organização policial vão surgindo na Europa medieval, tendo por idéia central a especialização de missões.
A França não escapa a esse modelo, e, antes mesmo da Maréchaussée, polícia militar rural antecessora da Gendarmaria contemporânea, cria, no reinado de São Luís IX, um sistema policial para a capital. O preboste de Paris, chefe dessa força inaugurada pelo santo rei do século XIII, tem a sob seu comando, vigias a pé – que, por sua vez, coordenam todos os adultos do sexo masculino, em estado de mobilização permanente, para a guarda da cidade –, e tropas de cavalaria. Além deste policiamento ostensivo, cargos de investigadores e comissários de polícia vão surgindo, e acumulam funções investigativas e judiciais.
O modelo parisiense espalha-se, com o êxito alcançado, por toda a França, com uma rapidez impressionante. E da unificação dessas polícias municipais aparece, séculos mais tarde, a Polícia Nacional, de natureza civil, e encarregada do policiamento ostensivo de grandes cidades e da polícia judiciária.
Conclusão
É inegável que a instituição policial acompanhou o homem desde sempre. Falar em sociedade é falar em delito e em segurança.
Sem embargo, embora forças policiais tenham existido desde os primeiros Estados – por primitivos que sejam, como agrupamentos familiares, ou em tribos maiores e mesmo impérios da Antiguidade –, a atual configuração das polícias, com um entendimento correto de todas as suas missões –patrulhamento, manutenção da ordem, apuração de delitos –, e a valorização das tarefas especializadas, bem como da divisão territorial para melhor desempenho do trabalho, é criação da Idade Média. Por todo o estudo que aqui expusemos, era natural que tal modelo de ação policial só poderia ter surgido naquele tipo de Civilização, com todos os seus valores e seu modo de pensar e agir.
A polícia moderna, pois, é cria do homem cristão, e filha dileta da Idade Média.
[1] cf. STARK, Rodney. The Victory of Reason. How Christianity Led to Freedom, Capitalism and Western Sucess, Random House, 2005; WOODS, Thomas E. Woods, Jr., How the Catholic Church built Western Civilization, Washington: Regnery Publishing, 2005; PERNOUD, Régine. Idade Média. O que não nos ensinaram, São Paulo: Agir, 1994
[2] BRODBECK, Rafael Vitola. Cristo, Rei do universo, sem data.
[3] GIORDANI, Mário Curtis. História dos Reinos Bárbaros, vol. II, Petrópolis: Vozes, 1971, p. 65
[4] CALMETTE, Joseph. Le Monde Féodal, Paris: Presses Universitaires de France, 1951, p. 93
[5] KOSCHAKER, Paul. L’Europa e il Diritto Romano, Firenze: Sansoni, p. 15
[6] Annales Royales
[7] GIORDANI, Mário Curtis. História dos Reinos Bárbaros, vol. I, 3ª ed., Petrópolis: Vozes, 1985, p. 198
[8] BRODBECK, Rafael Vitola. A União Européia à luz da Civilização Católica, sem data.
[9] MONET, Jean-Claude. Polícias e sociedades na Europa, 2ª edição, São Paulo: EDUSP, 2002, pp. 55-101
[10] Claro que a Espanha tinha seu exército, tanto que passou 800 anos em guerra contra os mouros em seu próprio território. Mas era um exército formado por nobres e seus homens, e sem a unidade e a o profissionalismo que caracterizaram as forças armadas modernas.