O direito à vida, amparado pela lei natural e pela grande maioria das legislações positivas, é absoluto, por ser a origem de todos os outros. Não há que se falar em direitos dos mortos – e mesmo aqueles a estes relativos tutelam, em verdade, o direito à memória e à honra mantidos pelos descendentes do extinto. Protegido, vimos, pela norma positivada pelo Estado, nem por isso deixa de vincular-se juridicamente à natureza, pelo que o Direito Natural é seu primeiro garante.
Forma peculiar de proteção à vida é a legítima defesa de si e de outrem. Aparentemente constitui-se em uma exceção ao mandamento de não matar, ao qual é cominado uma sanção criminal. Todavia, por ser o direito à vida absoluto como dissemos, não comporta o mesmo exceções de espécie alguma. A legítima defesa, na realidade, é uma proteção à vida humana, um exercício de fato do direito à existência, e não uma válvula de escapa que permite que este seja desrespeitado sob determinadas condições. Não quer o legítimo defensor a morte do agressor injusto: aceita-a, tolera-a, tendo em vista as circunstâncias nas quais se encontra, eis que a única possibilidade de efetiva defesa da própria vida consubstancia-se, no caso, no ato de ceifar a do violador da ordem jurídica e social. Do exposto, temos a natureza do conceito de legítima defesa. Ao que rompe o ordenamento proibitivo do atentado à vida, reserva-se, quando esta é a única solução imediatamente eficaz, a justa reação conservacionista do atacado, convertido em defensor de si ou de terceiros. Não é este o agente da morte, senão mero instrumento da gerada pelo próprio agressor, que aceita, mesmo tacitamente, a conseqüência de seu ato desordenadamente violento e intrinsecamente injusto.
Não é a legítima defesa mero instituto de Direito Positivo, i.e., não é simples criação do Estado, que, se não o houvesse feito, criminalizaria quem tem direito à autodefesa – e por vezes dever até! Desdobramento prático do direito pessoal à vida, a legítima defesa pertence ao Direito Natural, conquanto a preservação vital é inata ao ser humano. Explica-o, filosófica e juridicamente, o grande gênio do Medievo e da Civilização Ocidental, Santo Tomás de Aquino, glória dos dominicanos, dos pensadores da própria Igreja, que, no dizer dos Papas, fez dela a sua doutrina. É o ensino do Aquinate: “A ação de defender-se pode acarretar um duplo efeito: um é a conservação da própria vida, o outro é a morte do agressor (...). Só se quer o primeiro: o outro, não.”[1]
Da mesma maneira, o Catecismo da Igreja Católica sanciona o postulado jusnaturalista, ao declarar que “o amor a si mesmo permanece um princípio fundamental da moralidade. Portanto, é legítimo fazer respeitar seu próprio direito à vida. Quem defende sua vida não é culpável de homicídio, mesmo se for obrigado a matar o agressor (...).”[2]
Muitos juristas discutiram, por anos, a partir do liberalismo, sobre a natureza do instituto jurídico da legítima defesa. Versaram alguns, baseados em um juspositivismo extremo, que, sendo o Estado o detentor do direito de defesa, delega-o ao indivíduo quando não puder exerce-lo. Tal conceito é equivocado, pois ignora completamente a realidade das coisas e o próprio fato, indiscutível, de que o primeiro a desejar, exercer e proteger um direito é o próprio possuidor desse direito. Assim, o direito à vida não é uma concessão do Estado ao indivíduo, mas algo inerente à sua natureza. Também o são os direitos anexos fundamentais, destinados à sua efetivação e conservação. Existente o homem, há o direito à vida, a qual deve ser defendida primeiramente por ele mesmo, subsidiariamente por outros e pelo Estado. Disso já falavam os escolásticos.
Outras teorias, menos absurdas do que a dos que declaram ser a legítima defesa uma delegação do Estado – que teria o primado do exercício do direito à vida de seus súditos e sua conservação, o que vimos ser errôneo –, pecam, todavia, por inexatidão de termos e pressupostos. Para alguns, na legítima defesa, há colisão de bens jurídicos, o que faz prevalecer o do agredido, por ser mais valioso; para outros, como Carrara, há uma delegação inversa a já comentada, desta feita do indivíduo ao Estado, de seu direito de defesa – o que é uma inverdade também, pois o que se delega é o exercício de alguns atos de defesa e, mesmo assim, de modo subsidiário, sem renúncia ao exercício direto –, o qual é retomado quando o Estado não puder defendê-lo; enfim, os teóricos das escolas subjetivistas ligam, como Puffendorf, o instituto ao estado de espírito da pessoa, a qual ficaria perturbada pela agressão ou coagida por ela, ou, então, aos motivos determinantes da repulsa do agredido.
“Todas essas opiniões”, é o magistério do culto Magalhães Noronha, destacado penalista de nossa Terra de Santa Cruz, referindo-se às errôneas teses citadas sobre a natureza da autodefesa, “não procedem, como é fácil verificar. Os subjetivistas transportam a legítima defesa para o terreno da culpabilidade, o que é insustentável, enquanto os objetivistas ou se fundam na idéia contratualista, ou desconhecem a essência do instituto, onde não há conflito de interesse – como no estado de necessidade – mas ofensa a um interesse juridicamente tutelado.”[3] De fato não há conflito entre o real interesse de defesa e um inexistente interesse de agressão.
Logo a seguir, o festejado e erudito penalista conclui que a opinião predominante entre os doutos, hodiernamente, é a de que a legítima defesa é causa excludente da antijuridicidade – teoria felizmente acolhida por nossa lei penal material e indiscutivelmente apregoada pelos juristas nacionais –, é tutela do direito próprio e de outrem. Excluída a ilicitude, tem-se que a legítima defesa é um verdadeiro direito, conseqüência óbvia e autêntico corolário do direito natural, ainda que positivado, à vida.
No século XIII, já tinha afirmado o mesmo o mestre Santo Tomás. A teimosia dos liberais, com sua ânsia em reestruturar o mundo ignorando as lições da moral clássica, é que criou as teorias precedentemente aludidas. Ruindo as mesmas, voltamos ao pensamento tomista, e torna-se no mínimo honesto reconhecer, nessa matéria ao menos, a subordinação das idéias à realidade, varrendo qualquer espécie de ideologia. É, aliás, a compreensão do Doutor Angélico, que, antes da de outrem, estamos ordinariamente obrigados a defender nossa própria vida diante de um ataque movido por um injusto agressor, no que a legítima defesa é um direito, e, n’alguns casos, também um dever, e dever grave, para os que são responsáveis pela vida de outros (pai de família, superior, agente do Estado com atribuição legal para tal, militar etc).
O Direito Positivo brasileiro, na esteira do Direito Natural, assegura a ação de quem, em legítima defesa, repele agressão injusta mesmo com a morte do agressor. Sendo a morte inevitável, que seja a do violador da ordem consubstanciada no preceito legal. E conceitua nossa lei o instituto, valendo-se do estabelecimento de certas condições que o caracterizam, as quais, longe de serem criações do puro arbítrio do legislador ou herança de codificações pregressas somente, inspiram-se na moral cristã clássica, notadamente no pensamento do Aquinate (outra vez), e presente até no Direito Canônico positivo, que aceita a excludente com a definição tradicional. Isto posto, reza o Código Penal pátrio:
Art. 25 – Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios
necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.
Eis aí os elementos caracterizadores da legítima defesa, sem os quais não há que se falar nela: agressão injusta atual ou iminente, moderação no exercício do direito, emprego dos meios necessários, defesa de direito próprio ou alheio.
Não é outro, repitamos, o ensino de Santo Tomás, explicitando e explicando a natureza: “Se alguém, para se defender, usar de violência mais do que o necessário, seu ato será ilícito. Mas, se a violência for repelida com medida, será lícita.”[4]
O nefasto Estatuto do Desarmamento, tão comentado, além de desrespeitar o direito de propriedade, constitucionalmente tutelado, e de lançar as bases de uma cultura da covardia e do capitulacionismo, arremete pesados e inflamados dardos contra a legítima defesa, tal como a comentamos neste ensaio – eis que proibindo o porte ordinário de armas, retira a possibilidade do uso “dos meios necessários”, criminalizando o legítimo defensor –, num claro desrespeito à vida: natural, constitucional e penalmente protegido.
Se a legítima defesa não é direito dado pelo Estado, como pudemos perceber ao longo deste texto, também não cabe a ele retirá-lo de seus súditos, extrapolando os limites de seu poder e investindo, à moda totalitária[5], contra o princípio da subsidiariedade.
[1] S. Th., II-II, q.64, a.7
[2] Cat., 2264
[3] NORONHA, Magalhães. “Direito Penal”, São Paulo: Saraiva, 2000, 35ª edição atualizada, vol. 1, p. 195
[4] Santo Tomás de Aquino. Op. cit.
[5] Mesmo com democracia e manifestação da vontade unânime do povo, pode haver totalitarismo. Este não é necessariamente sinônimo de ausência de regime democrático, e sim a prática reiterada de atribuir-se o Estado poderes que não tem. Não nos esqueçamos que o povo alemão apoiou Hitler, e boa parte dos italianos de então pensava com o Duce.
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