Em certos círculos acadêmicos e jurídicos, começa-se a tencionar a consideração do delegado de polícia como autoridade judiciária. Para tal, invocam-se argumentos os mais diversos, desde a redação do Código de Processo Penal até o próprio significado de “polícia judiciária”.
Destarte, iremos enfrentar alguns deles, demonstrando a nossa posição.
Inquérito policial, verdadeiro juízo de instrução
Um dos argumentos utilizados é justamente o de considerar o inquérito policial uma espécie de juízo de instrução. Sendo juízo, a autoridade que o preside, por mais que se a denomine delegado de polícia, só pode ser juiz, i.e., alguém revestido de autoridade judiciária. Nada mais lógico se realmente apreciarmos o inquérito com esse viés.
Certo é que o inquérito policial se constitui em um procedimento preparatório ao processo criminal, e, na linguagem do vulgo, poderia ser mesmo considerada uma instrução. Todavia, não se trata de um juízo. O caráter administrativo das peças que formam o inquérito policial é pacífico.
Nesse sentido, ainda que o delegado de polícia tenha poderes de decisão na presidência do inquérito policial, não são o suficiente para caracterizá-lo como autoridade judiciária. Ele não jurisdiciona, não “diz o Direito”, apenas o aplica em âmbito administrativo, mesmo que preparatório e informativo do ulterior processo penal. Não é o inquérito um juízo, de instrução que seja, mas um procedimento de natureza administrativa. Ele, como o juízo de instrução clássico da França, também prepara o processo judicial criminal, porém, igualmente como em outros Estados do Velho Mundo, o faz sem imiscuir-se na esfera do Poder Judiciário, merecendo autêntica pecha de ato administrativo.
Delegado de polícia, autoridade com funções de polícia judiciária
Outra alegação é de que a Carta Magna e a legislação infraconstitucional, ao utilizarem a expressão “polícia judiciária”, reconhecem a atividade do delegado de polícia como propriamente jurisdicional.
Nada mais falso – é o que diremos.
Polícia judiciária, segundo os doutrinadores, é a atividade que tem por missão precípua a apuração da materialidade das infrações penais e sua autoria. É assim chamada por ser uma tarefa preparatória ao processo judicial criminal, por coadjuvar a futura ação penal, levantando uma série de informações que, bem utilizadas pelo órgão do Ministério Público, influenciarão no livre convencimento do juiz, este sim autoridade jurisdicional.
Se a atividade de polícia judiciária é função policial, não função jurisdicional, o delegado de polícia é autoridade policial, não autoridade judiciária. A autoridade policial preside o inquérito, mais tarde usado como informação para um processo judicial, porém não está dentro da carreira judiciária, nem diz o Direito, não jurisdiciona.
A linguagem da Exposição de Motivos do Código de Processo Penal
Não se poderia deixar de elencar esse argumento, que, na visão dos defensores da autoridade judiciária do delegado de polícia, é considerado bastante forte.
É fato, reconhecemos, que a Exposição de Motivos do CPP, em seu item IV, utiliza os termos e expressões “instrução provisória” e “processo preparatório” para se referir ao inquérito policial. Também há a menção às decisões do delegado de polícia como sendo “juízo”, na frase que segue o:
Por mais perspicaz e circunspeta, a autoridade que dirige a investigação inicial, quando ainda perdura alarma provocado pelo crime, está sujeita a equívocos ou falsos juízos a priori, ou a sugestões tendenciosas.
Ora, é forçoso reconhecer que a Exposição de Motivos do CPP não se reveste de natureza legal. Não há nada em sua redação que seja preceptivo. Sua observância é nula. É mero comentário do autor da lei, sem força legislativa alguma.
Outrossim, as expressões utilizadas devem ser entendidas em seu contexto. Ainda que o inquérito seja instrução, não se trata aqui da chamada instrução processual. Até mesmo porque o próprio CPP vai falar, mais tarde, em seus artigos, da verdadeira instrução no curso do processo: a instrução criminal, esta sim ato jurisdicional. A instrução referida ao inquérito não é judicial, mas administrativa, e isso se infere, além do exposto, pelo adjetivo “provisória”. Antes de ser argumento favorável aos que defendem o delegado de polícia como autoridade judiciária, a citação desses vocábulos acabam por dar mais munição justamente aos que de tal tese – absolutamente minoritária, é bom que se diga – discordam.
Da mesma maneira, se deve situar bem a fórmula “processo preparatório”. Não é pela utilização do termo “processo” que o inquérito adquirirá natureza jurisdicional. Também no âmbito administrativo se fala em processo, e eles não têm, como é sabido, caráter judicial. Se o tivessem, não seriam administrativos, de vez que essas duas funções, ainda que exercidas também de modo atípico por outros Poderes do Estado que não os específicos e primordiais a elas vinculados, não se devem confundir. O que dizer, por fim, dos processos administrativos disciplinares? Neles não só consta o vocábulo “processo”, como há verdadeiro julgamento (no que parte da doutrina os classifica como exercício atípico de função judicial pelo Poder Executivo e pelo Poder Legislativo). Ainda assim, os processos administrativos disciplinares não fazem de seu presidente uma autoridade judicial.
Enfim, a palavra “juízo”, transcrita na citação supra, deve ser tomada em seu sentido lato, comum, como em “juízo de valor”. Realmente, como qualquer autoridade (militar, eclesiástica, executiva, legislativa, ministerial etc), o delegado de polícia deve fazer ponderações e emitir juízos, deve discernir entre uma coisa e outra, deve tomar decisões. Nada disso o torna juiz. O homem ordinário, mesmo sem autoridade, julga a cada instante, adota juízos de valor a cada passo. Nem por isso, ele é juiz. Da mesma forma, ainda que esse homem seja autoridade e profira juízos, no sentido comum, não se torna autoridade judiciária. O prefeito, o legislador, o comandante militar, o promotor de justiça, o bispo, o Papa, o presidente, são autoridades e emitem juízos, mas não são autoridades judiciárias coisa alguma. Igual caso é o do delegado de polícia.
O CPP e os termos “jurisdição” e “competência” no art. 4º
O Código de Processo Penal, ao utilizar, em seu art. 4º, antes do advento da Lei 9043/95, o termo “jurisdição” aplicado à função do delegado de polícia, parecia indicar que este teria uma autoridade judiciária, dizem os defensores da teoria ora discutida. Com a mudança de “jurisdição” para “circunscrição”, essa discussão cai por terra, tendo em vista a nova nomenclatura, que nada mais faz do que corrigir um termo impreciso.
De outra sorte, ainda que restando, no parágrafo único do referido artigo, a palavra “competência” para se referir ao delegado de polícia, quando deveria utilizar “atribuição”, não se deve fazer a ilação de que, com isso só, sua autoridade seja judiciária. É bem verdade que competência é termo utilizado, juridicamente, para os órgãos do Poder Judiciário. Competência é a medida da jurisdição, bem o sabemos. Todavia, mera interpretação gramatical da norma, sem o seu sentido teleológico e, mesmo, integral, faz cair o artigo em um absurdo.
Nesse diapasão, há que se fazer uma interpretação sistemática deste artigo com o restante do Código, em que fica clara a função administrativa do delegado de polícia, nitidamente diferenciada da jurisdicional. Mais ainda, é preciso harmonizar o Código com as demais normas de nosso ordenamento, fazendo, prevalecer, além disso, os comandos legais da Constituição Federal. Em todas essas leis, e na Carta Política de 88, estão bem separadas as funções estatais, distribuídas aos Poderes de modo típico e atípico. E, se bem que a função jurisdicional possa ser exercida pelo Poder Legislativo quando julga o chefe do Poder Executivo em crimes de responsabilidade, e pelo Poder Executivo (e Legislativo), segundo autores, na prolação de decisões em processo administrativo disciplinar, não há nenhuma menção à tarefa jurisdicional a ser exercida, eventualmente, pelo delegado de polícia, mesmo como função atípica. Além disso, mesmo que houvesse essa menção, isso não o tornaria, por si só, autoridade judicial, de vez que mesmo o Senado julgando o presidente da República em crimes de responsabilidade, e os ministros de Estado e comandantes das Forças Armadas nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles, não é, por meramente exercer, em casos tópicos, função jurisdicional, uma autoridade judiciária. O exercício de função atípica, i.e., o exercício de função típica de um Poder por outro, não torna esse outro equivalente àquele em natureza.
De outra sorte, e agora concluímos nossa breve explanação, não há que se dar muita relevância ao uso do termo “competência” quando usado em relação à tarefa do delegado de polícia. Aqui, o vocábulo está como sinônimo de atribuição, pois empregado em seu sentido popular, com notável atecnia do legislador, tal qual reconhecido pela unanimidade da doutrina processualista.
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